Artículo

Carneiro, bode, chifres e nitsdaq: uma análise intertextual de Daniel 8

Sheep, goat, horns and nitsdaq: An intertextual analysisof Daniel 8

Eloá Moura Galvão
Centro Universitário Adventista, Brasil

DavarLogos

Universidad Adventista del Plata, Argentina

ISSN: 1666-7832

ISSN-e: 1853-9106

Periodicidade: Semestral

vol. XXI, núm. 2, 2022

davarlogos@uap.edu.ar

Recepção: 01 Abril 2022

Aprovação: 02 Junho 2022



DOI: https://doi.org/10.56487/dl.v21i2.1035

Resumo: A presente pesquisa aborda Daniel 8 a partir de uma leitura atentiva (close reading) do texto e da abordagem de análise intertextual proposta por Gérard Genette em sua obra Palimpsestos. O foco principal da investigação se limitou à busca dos possíveis intertextos desse capítulo de Daniel e à análise de como eles se manifestam na sua trama textual. Por fim, se explora brevemente as possíveis implicações desses intertextos para a compreensão das temáticas da força profanadora do santuário e do juízo divino em Daniel 8.

Palavras-chave: Daniel 8, Intertextualidade, Ezequiel, Isaías, Levítico 16.

Abstract: This paper offers a close reading of Daniel 8 from the intertextual analysis approach proposed by Gerard Genette in his work Palimpsests. The main focus of the investigation was limited to the search for possible intertexts in this chapter of Daniel and the analysis of how they manifest themselves in its textual plot. Finally, the possible implications of these intertexts for the understanding of the themes of the desecrating force of the sanctuary and the divine judgment in Daniel 8 are briefly explored.

Keywords: Daniel 8, Intertextuality, Ezekiel , Isaiah , Leviticus 16.

Introdução

O texto de Daniel 8 apresenta uma intrigante visão apocalíptica que envolve animais (um carneiro e um bode), com ênfase nos seus chifres, no conflito entre eles, nas ações da ponta pequena contra Deus, e as referências ao santuário e seu serviço. Ao analisar o oitavo capítulo do livro de Daniel, que intertextos parecem ser evocados pela sua terminologia, frases e ideias? Como tais intertextos impactam na compreensão das temáticas da força profanadora do santuário e do juízo divino em Daniel 8?

A presente pesquisa aborda o oitavo capítulo do livro de Daniel a partir de uma leitura atentiva do texto (close reading), considerando-o na sua forma final, em seu contexto canônico,1 e a partir de uma análise intertextual seguindo a proposta da “transtextualidade” de Gérard Genette em sua obra Palimpsestos.2 O foco da presente investigação se limitou a buscar os possíveis intertextos canônicos desse capítulo de Daniel, analisando como eles se manifestam na sua trama textual, e explorar brevemente as possíveis implicações dos resultados encontrados para a compreensão das temáticas da força profanadora do santuário e do juízo divino, ambas presentes em Daniel 8. O presente estudo se torna extremamente importante haja visto que pesquisas que abordaram o livro de Daniel a partir de uma perspectiva intertextual, ao abordarem o capítulo 8, ou o fizeram de forma muito limitada ou sequer trataram desse capítulo.3 Esse aspecto justifica, portanto, uma análise intertextual mais focada nesse capítulo de Daniel.

A intertextualidade de Daniel 8 e o debate acadêmico

A seguir serão apresentados os intertextos mais comumente identificados para Daniel 8. Scheetz chama a atenção para os intratextos de Daniel 8, ou seja, intertextos no próprio livro de Daniel. Primeiro, o autor apresenta uma conexão do oitavo capítulo com Daniel 2, na referência que ambos fazem ao tempo do fim (cf. Dn 8,19; 2,28). Segundo, ele destaca que Daniel 8 está conectado com a visão do capítulo 7, ao referir-se diretamente a ela (cf. Dn 8,1), ao utilizar expressões como קַרְנַיִם (“dois chifres”, cf. 8,2; 7,7), na semelhança entre as descrições do carneiro e da besta (cf. 8,4; 7,7) e de um chifre pequeno (cf. 8,9; 7,8), na descrição de tempos específicos (cf. 8,14; 7,12.25), entre outras similaridades.4 Terceiro, ele também aponta uma ligação intratextual entre Daniel 8 e 9, pois em ambos os capítulos há o aparecimento do mensageiro Gabriel (cf. 8,16; 9,21) e uma menção à “transgressão” que anteriormente somente é mencionada em Daniel 8 (cf. 9,24). Além disso, o capítulo 9 refere-se explicitamente à visão do oitavo capítulo (cf. 9,23).5

Finalmente, Scheetz destaca que Daniel 8 também está conectado com a visão dos capítulos 10-12. Primeiro, o autor destaca que há um paralelo entre os quatro reinos de Daniel 8,22-23 e o foco de Daniel 11 em dois deles (reino do Norte e reino do Sul). Segundo, há semelhança no conflito entre o bode e o carneiro em Daniel 8,3-8 e o conflito entre o reino do Norte e do Sul em Daniel 11. Finalmente, a derrota do chifre pequeno em Daniel 8,25 se assemelha ao fim do reino do Norte em Daniel 11,45.6

Outros intertextos comumente apontados para Daniel 8 são os do livro de Ezequiel. Matthew Poole, no século xix, sugeria que tanto no oitavo capítulo de Daniel, quando o profeta é transportado para Susã, como em outras descrições no livro, há uma imitação das experiências de Ezequiel ao ser transportado de um local para o outro, como nas visões de Ezequiel 8,1-11 e 40-48.7 Outros estudiosos também argumentam nesse mesmo sentido, como Whitcomb, Miller, Gowan e Newson.8

Hartman e Di Lella propõem que elementos como a descrição do profeta de ser posto em pé tanto em Daniel 8,18 quanto em Ezequiel 2,2 e a expressão לְיָמִים רַבִּים em Daniel 8,26 e Ezequiel 12,27 apontam para uma ligação entre os livros. Além disso, para os autores, a expressão “filho do homem”, como forma de tratamento em Daniel 8,17, foi emprestada de diversas ocorrências do livro de Ezequiel, como em 2,1.3.6 e 8.9 Em relação a esse último aspecto, Lange et al. apresentam a mesma argumentação.10

Além dos argumentos apresentados, Goldingay indica outros elementos que reforçam uma ligação intertextual entre Daniel 8 e o livro de Ezequiel. Primeiro, a voz descrita como humana comissionando Gabriel em Daniel 8,16 nos remete à descrição de Ezequiel 1,26. Segundo, as descrições de Daniel 8,1-2 e Ezequiel 1,1-3 se assemelham ao apresentar tanto a data quanto o cenário geográfico da visão. Terceiro, há um paralelo entre Daniel 8,17-18 e Ezequiel 1,28-2,2 e 3,23-24, onde os dois profetas são descritos caindo com o rosto em terra. Quarto, tanto em Daniel 8,15 quanto em Ezequiel 8,2, há o aparecimento de um ser com aparência humana. Quinto, o poder opressor descrito em Daniel 8 encontra paralelos nos vínculos entre sabedoria e orgulho descritos em Ezequiel 28,2-5.11 Finalmente, o autor destaca que Daniel 8,1-2 evoca as visões de Ezequiel 10,4 e 12,5-7, ao mencionar que “a visão é localizada em um portão que se abre para um canal, na tradição da visão de Ezequiel pelo canal de Quebar (cf. 10,4; 12,5-7 [sic.]; 1 Enoque 13, 7; também o sonho de Faraó situado em um rio, Gen 41); isso pressupõe uma jornada visionária como a que Ezequiel também experimentou”.12

Goldingay também identifica uma ligação intertextual entre Daniel 8 e algumas alegorias do livro de Ezequiel. Para ele, as alegorias do oitavo capítulo de Daniel por meio dos animais apresentados, relembram a natureza das alegorias de Ezequiel 15, onde a nação de Israel é apresentada como uma videira inútil; de Ezequiel 17, onde Israel é descrito como uma jovem rejeitada que é acolhida por Deus, mas depois escolhe prostituir-se; de Ezequiel 19, onde a nação de Israel é descrita como um leão enjaulado; e a alegoria de Ezequiel 39,18, nas imagens de “bodes” e “carneiros”.13 O autor ainda destaca que a semelhança na apresentação de um bode e um carneiro (animais limpos contrastantes com os híbridos de Daniel 7) no início da visão (8,3-8) recordam os mesmos animais apresentados em Ezequiel 34,17. Além disso, a expressão “terra gloriosa” que ocorre em Daniel 8,9 seria uma alusão à Ezequiel 20,6 e 15, o qual utiliza o mesmo termo para descrever a terra de Israel.14

Newson ainda aponta outras semelhanças entre Daniel 8 e o livro de Ezequiel. Primeiro, o recebimento da visão por ambos os profetas junto a um curso de água (Dn 8,2.13-14; Ez 1,3). Segundo, o uso das imagens de bodes e carneiros em Daniel 8,3-8 e em Ezequiel 34,17. Terceiro, a utilização do termo מִקְדָּשׁ (“santuário”) em Daniel 8,11, o qual é comumente empregado para referir-se ao “santuário” no livro de Ezequiel. Além disso, a autora também destaca o levantar-se do profeta após uma ação externa e celestial tanto para Daniel quanto para Ezequiel (cf. Dn 8,18; Ez 1,28-2,2; 3,23-24).15

Outros intertextos apontados para Daniel 8 são os do livro de Isaías. Porteous assinala uma ligação entre Daniel 8 e Isaías 14, onde tanto o chifre pequeno (cf. Dn 8,9-12) quanto o rei da Babilônia (cf. Is 14,13) são descritos exaltando-se acima do próprio Deus.16 Nessa mesma perspectiva, Goldingay assegura que há uma ligação entre Daniel 8 e os textos bíblicos que adotam “o mito de um ser celestial subordinado que procura usurpar o lugar do próprio Deus”, como ocorre em Isaías 14, onde a aplicação imediata é ao reino de Babilônia.17 Esse mesmo intertexto é destacado por Henry e Jamieson, Fausset e Brown, os quais apresentam tanto o chifre pequeno quanto a descrição de Isaías 14 como um modelo de anticristo.18 Gowan chega a afirmar que Daniel possuía um conhecimento prévio de Isaías 14, por isso utilizou-se de tais temas míticos em sua descrição.19

Ao tratar do intertexto de Isaías 14, Newsom afirma que as ações do chifre pequeno de direcionar-se ao exército celestial e as estrelas, pisoteando-as (8,10), parece ser um resumo de Isaías 14,12-15, onde a estrela da manhã pretende subir “acima das estrelas de Deus” e tomar o lugar do Altíssimo. Para ela, o fato de as estrelas serem lançadas ao chão e serem pisoteadas em Daniel 8,10, aspecto ausente na descrição de Isaías, pode revelar o conhecimento por parte do autor de Daniel de uma versão diferente do que ela denominou como o “mito” de Isaías, ou poderia ser um acréscimo do autor de Daniel à descrição de Isaías.20

Goldingay ainda assinala outros intertextos de Daniel 8 no livro de Isaías. Primeiro, alguns aspectos da tirania do chifre pequeno de Daniel 8,9-12 encontram paralelos nos vínculos entre sabedoria e orgulho na descrição do poder da Assíria em Isaías 10,13. Segundo, a descrição do avanço do bode em Daniel 8,5-8, a qual lembra o avanço de Ciro em Isaías 41,3. Terceiro, a semelhante ocorrência do termo פֶּשַׁע (“rebelião”) em Daniel 8,12-13 e Isaias 59,12-13. Quarto, a descrição da verdade sendo completamente desconsiderada em Daniel 8,12 e em Isaías 59,14-15. Quinto, o uso semelhante dos termos רַבִּים (“muitos”), שָׁחַת (“destruir”) e עֲצוּמִים (“poderosos”) em Daniel 8,24-25 e Isaías 52,14 e 53,12. Sexto, a figura do líder do exército em Daniel 8,11 que pode ser análoga à figura do um assessor pessoal de YHWH de Isaías 63,9. Sétimo, a menção à rebelião desoladora em Daniel 8,13, a qual se assemelha à descrição de Jerusalém como uma desolação em Isaías 64,10-11 [9-10]. Finalmente, a descrição do santuário de Deus sendo pisoteado pelos adversários de Israel tanto em Isaías 63,15 e 18 quanto em Daniel 8,11 e 13.21

Finalmente, são apontados intertextos de Daniel 8 no livro de Levítico. Doukhan, Shea, Maxwell, Hasel e Souza apontam a existência do intertexto de Levítico 16 no oitavo capítulo de Daniel.22

Pode parecer estranho a princípio, chamar a atenção para o livro de Levítico no meio da discussão de um livro profético como Daniel. Levítico é um livro de lei, não de profecia. Mas, quando se considera a natureza do conteúdo desta profecia, pode-se ver mais claramente como essas duas fontes se conectam. Elas se conectam através do santuário. Daniel 8 é, em última análise, uma profecia sobre o santuário. Levítico é um livro de leis e regulamentos sobre o que ocorria no santuário terrestre. Assim, há uma conexão natural e lógica entre esses dois livros, e essa ligação é reforçada pela natureza dos símbolos usados em Daniel 8.23

Para Shea e Hasel, existem múltiplas evidências que esclarecem os vínculos terminológicos, conceituais e teológicos existentes entre Daniel 8 e Levítico 16.24 A utilização das expressões תָּמִיד (“contínuo”, utilizada para as várias atividades sacerdotais realizadas dentro do templo), פֶּשַׁע (“transgressão”), “santuário”, “purificação” e a utilização de um carneiro e um bode (animais domesticados usados para sacrifícios nos serviços do santuário) são evidências da ligação entre os textos. Hasel afirma que “um hebreu com profundo conhecimento sobre o ritual sacrifical leria esta profecia muito naturalmente em termos do ritual do Dia da Expiação”.25

De forma semelhante, Doukhan propõe o intertexto de Levítico 16 para a compreensão e interpretação de Daniel 8, apresentando paralelos singulares. Ele questiona:

Aqui permanece uma pergunta: Por que a visão do capítulo 8 substitui o ciclo de quatro animais por apenas dois, sendo eles ainda os mais insignificantes? Ele omite o primeiro e o quarto reino, ambos considerados primordiais por Daniel: Babilônia, a residência de Daniel representada pela “cabeça” e pelo “leão” (Daniel 2:37, 38; 7:4), e Roma, o estranho reino que tanto inquieta o profeta (Daniel 2:40; 7:7, 9). E por que esse repentino recuo do fantástico ao familiar, dois bizarros animais híbridos, que representam reinos pagãos, a dois animais comuns, classificados como limpos pela lei levítica?26

A resposta para tais perguntas, de acordo com Doukhan, é que “Daniel decidiu usar os dois reinos do meio como os principais personagens de sua visão, justamente por causa de sua significância. Seu principal enfoque, na verdade, não são os reinos em si, mas os dois animais: o bode e o carneiro.” Para o autor, tal associação é extremamente significativa no contexto do Yom Kippur, o Dia da Expiação, a maior festividade anual judaica (Lv 16,5). Nessa festa religiosa, eram oferecidos um carneiro e um bode como oferta dupla, ou seja, “além de suas representações dos reinos medo-persas e grego, os dois animais também evocam o ‘Dia da Expiação’”.27

Doukhan enfatiza que a presença do contexto de Levítico 16 em Daniel 8 se torna ainda mais clara quando é introduzida a descrição das ações do chifre pequeno envolvendo “o sacrifício diário”, “pecado” e “santuário” (Dn 8,11).28 “A passagem até menciona o principal oficiante do sistema sacrifical, o sumo sacerdote. A palavra hebraica traduzida como ‘Príncipe’ [sár, vv. 11, 25] é o termo técnico para o sumo sacerdote (Ed 8:24). No contexto do livro de Daniel, a palavra se refere a Miguel (Dn 10:5, 13, 21; 12:1), que está vestido de linho como o sumo sacerdote que oficia no dia do Yom Kippur.” O autor reitera que o grande comentarista Rashi também sugere que essa passagem deva ser lida considerando o contexto do Dia da Expiação apresentado em Levítico 16.29

Sem dúvida, esta preocupação especial em isolar e sublinhar a associação dos dois animais (o carneiro e o bode) a fim de transmitir uma sugestão ao Dia da Expiação era para preparar o terreno para o que segue. De fato, na extensão dessa passagem, no clímax da visão, há uma referência direta ao Dia da Expiação. O profeta fala em Daniel 8:14 da purificação do santuário. É significativo que a expressão obscura nisdaq, que significa literalmente “ser reintegrado em seus direitos”, tenha sido traduzida pela Septuaginta como “purificação” (katharisthesetai) do santuário. Os estudiosos da Septuaginta haviam entendido esta passagem como uma referência ao Dia da Expiação, o mesmo dia em que o santuário foi purificado (Levítico 16:19, 30).30

Ao apontar a ligação intertextual entre Daniel 8 e Levítico 16, Souza complementa que “vale a pena notar que, no ritual do santuário, um carneiro e um bode eram oferecidos na mesma cerimônia somente no Dia da Expiação”.31 Outro aspecto acerca desse intertexto, somado aos animais apresentados em Daniel 8, é o fato de a visão transitar da língua aramaica para a língua hebraica. Souza afirma que “essa mudança de símbolos e linguagem não é acidental. Ao contrário, parece ser uma estratégia usada intencionalmente para reforçar o conteúdo da visão”.32

Vale notar que esses capítulos [escritos em aramaico; Daniel 2,4b a 7,28] revelam tanto a experiência de Daniel em Babilônia como as profecias relativas aos quatro poderes mundiais. Assim, esses capítulos foram convenientemente escritos em aramaico, que era o idioma internacional daquele tempo. Mas, quando o foco muda para o santuário, o Messias e o povo de Deus (cap. 8-12), o livro retorna para o hebraico, a língua sagrada de Israel.33

Souza afirma que “a visão de Daniel 8 descreve um ataque ao santuário e a subsequente purificação desse no Dia da Expiação. É por isso que ela recorre, apropriadamente, com símbolos derivados do serviço ritual e utiliza a linguagem do santuário”.34

Em busca dos intertextos de Daniel 8

Devido ao recorte da presente pesquisa e seu foco no contexto canônico da Bíblia Hebraica, bem como a datação explícita no texto daniélico, que consistentemente o apresenta como um texto do período exílico,35 intertextos que são comumente evocados para Daniel 8, como o livro de Zacarias (texto pós-exílico) e as fontes não canônicas, como 1 e 2 Macabeus, 1 Enoque, o zodíaco e os omens babilônicos, não serão aqui abordados.36

O capítulo 8 de Daniel pode ser dividido em três blocos diferentes: a visão dos animais e do chifre pequeno (Dn 8,1-12), a visão dos seres celestiais e a reação do profeta Daniel diante de tal visão (Dn 8,13-19) e a explicação da visão dos animais e do chifre pequeno (Dn 8,20-27).

Na primeira seção de Daniel 8, encontramos uma parte introdutória que inclui a apresentação da localização temporal e geográfica do profeta. A localização temporal é um elemento comum nos livros de profecia. Tal descrição ou traz o dia, mês e ano em que o profeta recebeu a visão (característica marcante nas visões de Ezequiel) ou somente o ano (cf. Dn 8,1) ou, ainda, como na maioria das vezes, retrata todo o período do ministério do profeta (cf. Is 1,1; Jr 1,1-3; Os 1,1, entre outros). Por sua vez, a apresentação da localização geográfica da visão de forma detalhada não é um elemento frequente, estando presente apenas nas visões de Daniel 8 e 10, Ezequiel 1-3, 8-11 e 40-48, as quais possuem interessantes paralelos entre si, como será visto mais adiante.

Primeiramente, em Daniel 8, o profeta se vê na cidadela de Susã, província de Elão junto a um curso de água (canal de Ulai; 8,2). Logo em seguida, é relatado “e ergui meus olhos e vi, e eis que” (וָאֶשָּׂא עֵינַי וָאֶרְאֶה וְהִנֵּה) 8,3. No decorrer da visão, Daniel vê seres celestiais (8,13-19), em especial um ser com aparência de homem (Dn 8,15), e nessa interação com tais seres, o profeta cai sem sentidos com rosto em terra (נִרְדַּמְתִּי עַל־פָּנַי) 8,15-18. Após a reação do profeta, ele é posto em pé por um agente angélico e a explicação da visão lhe é dada (8,20-27). O profeta também é chamado de “filho do homem” (Dn 8,17). Um aspecto interessante a ser destacado é o foco da visão no santuário e no povo de Deus, que são evidentes através das ações do chifre pequeno de retirar do Príncipe o “contínuo” (תָּמִיד, utilizado para elementos do tabernáculo), derrubar o lugar do seu “santuário” (מִקְדָּשׁ) 8,11 e perseguir o povo santo (עַם) (cf. Dn 8,9-12.23-25). A visão também foca no juízo divino quando, diante dos bem-sucedidos empreendimentos do chifre pequeno, um clamor por intervenção e julgamento é feito: “Até quando?” (עַד־מָתַי) 8,13. Então, a resposta de um dos seres celestiais é: “Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será justificado/vindicado/purificado” (ִֹקִֹדֶשׁ) 8,14.

Devido à natureza literária do livro de Daniel, existem outras visões que estão em paralelismo interno com o oitavo capítulo. Em Daniel 2, a expressão “no fim dos dias” (בְּאַחֲרִית יוֹמַיָּא) 2,28 parece referir-se a um período de tempo apontado para o juízo, assim como em Daniel 8,19 (בְּאַחֲרִית הַזָּעַם כִּי לְמוֹעֵד קֵץ, “no final da ira que é para o tempo do fim”) conforme assinala Scheetz.37 Outra possível ligação se dá pelo uso da voz passiva na expressão “pedra foi cortada sem auxílio de mãos”, ligado ao processo de juízo de Deus e o estabelecimento de seu reino (Dn 2,34.45), como ocorre em Daniel 8,25, onde o rei astuto representado pelo chifre pequeno é quebrado “sem auxílio de mãos”, como parte do juízo sobre esse poder no final da história. Embora esses sejam paralelos com o oitavo capítulo que parecem apontar para uma intratextualidade por alusão,38 Daniel 2 parece não apresentar outros paralelos como ocorre com os capítulos da segunda parte do livro (Dn 7-12).

Em Daniel 7, ocorre a descrição de um chifre pequeno que fala insolências e faz guerra contra os santos (7,8.11.19-26), em paralelo muito próximo à descrição do chifre pequeno e suas ações em Daniel 8,9-12. Além disso, assim como no oitavo capítulo, há menção a quatro ventos (7,2; cf. Dn 8,8), dois seres celestiais são apresentados, sendo um o “Filho do homem”, que reivindica em favor do povo (7,13-14) e o outro o “Ancião de Dias”, que claramente efetua juízo em favor do povo de Deus livrando-o das ações do chifre pequeno (7,22.26), e há um tempo determinado para juízo (7,25; cf. Dn 8,14). Além do mais, há o foco nas temáticas do juízo divino e do povo de Deus (7:9-14, 21-22), e a própria visão do capítulo oito faz referência a visão de Daniel 7 (cf. Dn 8,1).

Por sua vez, a visão de Daniel 9,23-27 também está ligada a Daniel 8 por meio da utilização do termo מַּרְאֶה (“visão”, 9,23; cf. 8,26)39 e da menção que o próprio capítulo faz à visão de Daniel 8 (cf. 9,21). Semelhantemente, Daniel 9 traz expressões que demonstram um foco no santuário, como “fazer cessar a transgressão”, “dar fim aos pecados”, “expiar a iniquidade”, “ungir o Santo dos Santos”, “santuário”, “fará cessar o sacrifício” e “oferta de manjares”, como também no juízo divino e no povo de Deus (9,4-20.24-27).

Temáticas e expressões muito similares ocorrem em Daniel 8 e Daniel 10-12, estabelecendo assim um paralelo interno extremamente próximo entre esses dois capítulos no livro. Semelhante a visão de Daniel 8, o profeta também se encontra próximo a um curso de água (rio Tigre, Dn 10,4; cf. 8,2) quando é relatado “e ergui os olhos e eis que” (וָאֶשָּׂא אֶת־עֵינַי וָאֵרֶא וְהִנֵּה) 10,5; cf. 8,3). Em seguida, ele vê um homem vestido de linho com aparência celestial que fala com ele (10,6-9; cf. 8,15-16), o que o faz cair sem sentidos com o rosto em terra

(וַאֲנִי הָיִיתִי נִרְדָּם עַל־פָּנַי וּפָנַי אָרְצָה),10,6-9; cf. 8,18 sendo, logo em seguida, colocado de joelhos por um agente angelical (10,10; cf. 8,18).

Seguindo essa intertextualidade, Daniel 10-12 menciona um “princípe” (שַׂר) identificado como “Miguel”, o grande príncipe (10,13.21; 12,1, cf. Dn 8,11.25), os reinos Persa e Grego são retomados (11,2-3; cf. Dn 8,20-21), bem como a “terra gloriosa” (11,16; cf. 8,9), e há a presença de um rei que procura engrandecer a si mesmo por meio do engano (11,32.36-40), semelhantemente a descrição de Daniel 8,9-12 e 24-25.

Além disso, em Daniel 10-12 o foco da visão também está no santuário, no povo de Deus e no juízo divino. Nessa seção, as ações do “reino do Norte” têm o propósito de profanar o “santuário” (מִקְדָּשׁ), acabar com o “contínuo” (וְהֵסִירוּ) (הַתָּמִיד) e estabelecer a “abominação desoladora” (מְשׁוֹמֵם) (וְנָתְנוּ הַשִּׁקּוּץ) (Dn 11,31). Outro aspecto que aparentemente ressalta a temática do santuário é que Daniel 11,16 e 41 usam o termo צְבִי (“glória”) como uma metonímia para o santuário de Jerusalém, na expressão construta אֶרֶץ־הַצְּבִי (lit. “terra do glorioso”), onde o substantivo em absoluto צְבִי (“glória”) representaria o santuário, como posteriormente parece ser indicado em Daniel 11,45, onde a expressão aparece em sua totalidade como הַר־צְבִי־קֹדֶשׁ (“glorioso monte do santuário”).

Em relação aos focos no povo de Deus e juízo divino, a visão é dada com o objetivo de revelar ao profeta o que ocorreria ao povo de Deus nos últimos dias (10,14), sendo tais os sofrimentos, perseguições (11,33-35; 12,7) e livramento final (12,1). Igualmente a Daniel 8, na visão de Daniel 10-12 dois seres celestiais se encontram nas margens de um curso de água (12,5; cf. 8,13), e um deles questiona ao homem vestido de linho: “Até quando?” (עַד־מָתַי), 12,6 ; mesma expressão de tempo usada em 8,13), referindo-se a tudo que havia sido mostrado ao profeta e ao momento em que Deus exerceria seu juízo. A resposta é dada: “Passarão um tempo, tempos e metade de um tempo. E, quando tiverem acabado de destruir o poder do povo santo (עַם־קֹדֶשׁ) estas coisas todas se cumprirão” (12,7).

A semelhança entre termos e temáticas presentes nas visões de Daniel 8 e 7, 9 e 10-12 transparece uma conexão entre ambas, ao que Genette nomeou por “intratextualidade” (intertextualidade em escritos do mesmo autor). Além disso, o oitavo capítulo de Daniel parece estar ligado à Daniel 10-12 também por meio de semelhanças estruturais, correspondendo ao que Genette denominou como “arquitextualidade” (apresentam uma mesma estrutura).40 Portanto, a visão de Daniel 10-12 parece ser uma expansão detalhada da profecia de Daniel 8, tornando tal correlação única.

Outros intertextos de Daniel 8 parecem ser evocados no livro de Isaías. Em Isaías 10,5-34, a Assíria é descrita como um poder opressor do povo de Deus, assim como ocorre com o chifre pequeno de Daniel 8, e diversos outros paralelos podem ser identificados nessa perícope. Primeiro, em Daniel 8,13, o santuário e o exército são pisoteados (מִרְמָס), como em Isaías 10,6, onde o povo é pisoteado (מִרְמָס). Segundo, a atitude altiva do chifre pequeno de se engrandecer em seu coração (לְבַב) e de agir conforme lhe apraz (Dn 8,9-12 e 25) se assemelha a descrição do rei da Assíria que será punido por Deus devido a arrogância do seu coração (לְבַב, Is 10,7 e 12-14). Terceiro, em Daniel 8,19 e em Isaías 10:5 e 25 há menção à maldição/indignação (זַעַם) de Deus. Quarto, em Daniel 8,24, o povo santo (עַם־קְדֹשִׁים) será destruído, e em Isaías 10,6, o rei da Assíria é enviado para atacar o povo (עַם). Além disso, embora não haja um aparente foco no santuário, há na perícope o foco no povo de Deus e no juízo divino, pois Deus é descrito julgando tanto o povo da aliança como as outras nações.

Outro intertexto que parece ser evocado é Isaías 14,1-23, onde o rei de Babilônia é retratado como a “estrela da manhã, filho da alva” (Is 14,12), e demonstrando uma associação entre os poderes humanos, políticos e religiosos, com poderes não humanos, que aparecem no pano de fundo da descrição isaiânica e daniélica. Em Daniel 8,10-11, o chifre pequeno cresce até atingir os céus, lançando alguns do exército e das estrelas por terra, e procurando engrandecer-se até o Príncipe do exército. Por sua vez, em Isaías 14,12-14, o “rei da Babilônia” é descrito procurando subir ao céu, acima das estrelas de Deus, exaltando seu trono e sendo semelhante ao Altíssimo.

Souza argumenta que toda a descrição de Isaias 14,12-15 e o contexto geral do livro apontam para a mistura de realidades cósmicas e históricas, ou seja, “por trás do rei histórico local de Babilônia emerge a figura do rei cósmico de Babilônia, o verdadeiro poder que está por trás do tirano local”.41 Essa correlação com Isaías 14 parece indicar, então, que o chifre pequeno do oitavo capítulo de Daniel parece ser mais que um poder político-militar-religioso humano, implicando também num poder não humano que estaria por detrás, como também ocorre na visão de Daniel 10-12, onde o príncipe do reino da Pérsia é retratado resistindo ao mensageiro celestial e sendo vencido por Miguel (Dn 10,10-21), aspectos que demonstram tal realidade cósmica.

Na perícope de Daniel 8, entretanto, existem algumas diferenças marcantes em relação à Isaías 14. Primeiro, em Daniel 8,10, o verbo גָּדַל (“crescer”) é empregado em relação às ações do chifre pequeno, enquanto para as ações do “rei da Babilônia”, Isaías 14,13-14 utiliza-se do verbo עָלָה (“subir”). Segundo, em Daniel 8,9-12, o poder descrito “cresce” até aos céus, derruba as estrelas, cresce contra o Príncipe do exército, lança a verdade por terra, entre outras prósperas e terríveis ações (8,9-12); enquanto em Isaías, o poder descrito quer assentar-se nos altos céus como Deus, acima das estrelas, mas é lançado por terra (14,12), ao שְׁאוֹל (“sepultura”; 14,15). Finalmente, em Daniel 8,10, o poder descrito lança por terra as estrelas e as pisoteia, enquanto em Isaías 14, tal descrição é ausente. Mas, apesar dessas diferenças, existem fortes semelhanças entre Daniel 8 e este intertexto. Primeiro, o chifre pequeno em Daniel 8,24-25 é descrito destruindo (שָׁחַת) o povo (עַם), semelhantemente ao poder descrito em Isaías 14,20, que destrói (שָׁחַת) a terra e mata o povo (עַם). Segundo, os poderes descritos em Daniel 8,10 e Isaías 14,12-13 realizam movimentos ascendentes em direção ao céu. Terceiro, a semelhança da exaltação própria de tais poderes tanto em Daniel 8,10 e 25 quanto em Isaías 14,13. Finalmente, a perícope de Isaías 14,1-23 apresenta um marcante foco no povo, no juízo de Deus e, também, no santuário.42

Tais semelhanças e diferenças entre os textos de Daniel 8 e Isaías 14 aparentemente apontam para uma correlação entre os poderes apresentados e, também, para uma distinção entre eles. O chifre pequeno parece estar relacionado com o poder descrito como o “rei [cósmico] de Babilônia”, mas, ao mesmo tempo, é um poder distinto, com sua própria área de atuação e interesses específicos.43

Outro intertexto isaiânico que parece ter forte correlação com Daniel 8 é Isaías 52,13-53,12, especialmente em relação à descrição das ações do chifre pequeno. Primeiro, em Daniel 8,9-12 e 23-25, o chifre pequeno faz injustiças e, aparentemente, prospera, enquanto em Isaías 53,9, o servo do Senhor não faz violência/maldade e, aparentemente, não prospera. Segundo, em Daniel 8,23, o chifre pequeno tem sua atuação após serem completados os transgressores (הַפֹּשְׁעִים), enquanto em Isaías 53,12, o servo do Senhor é contado com os transgressores (פֹּשְׁעִים) e intercede pelos transgressores (לַפֹּשְׁעִים). Terceiro, em Daniel 8,24, o chifre pequeno prosperou (צָלַח) ao fazer como lhe apraz, enquanto em Isaías 53,10, a vontade do Senhor prospera (צָלַח) através das mãos de seu servo. Quarto, em Daniel 8,24, é descrito que o chifre pequeno destruirá os poderosos (עָצוּמִים), enquanto em Isaías 53,12, é descrito que o servo do Senhor repartirá o despojo com os poderosos (עָצוּמִים). Quinto, em Daniel 8,24, o chifre pequeno atua destruindo os poderosos e o povo santo (עַם־קְדֹשִׁים), enquanto em Isaías 53,8, o servo do Senhor é ferido por causa das transgressões do povo (עַם). Sexto, em Daniel 8,25, o chifre pequeno destruirá a muitos (רַבִּים), enquanto em Isaías 53,11, o servo do Senhor justificará a muito (רַבִּים). Finalmente, em Daniel 8,25, o chifre pequeno fará prosperar o engano (מִרְמָה), enquanto em Isaías 53,9, o engano (מִרְמָה) não é achado na boca do servo do Senhor.

Sendo assim, o chifre pequeno em Daniel 8 e o servo do Senhor em Isaías 53 estão correlacionados, mas, ao mesmo tempo, suas ações estão em completa oposição. Além do mais, os termos פֶּשַׁע (“rebelião”), רַבִּים (“muitos”), עַם (“povo”), מִרְמָה (“engano”), עָצוּמִים (“poderosos”), צָלַח (“prosperar”) ocorrem juntos em uma mesma unidade literária, em toda a Bíblia Hebraica, somente em Daniel 8 e Isaías 53, o que torna essa ligação intertextual única.

Além disso, as temáticas do santuário, povo de Deus e juízo estão bem presentes ao longo da perícope de Isaías 52,13-53,12. Nessa seção, o sofrimento do servo do Senhor aparece como o sacrifício vicário do sistema sacrifical que era realizado no santuário israelita (53,10). Também é afirmado que o servo do Senhor foi ferido por causa das transgressões do povo (53,8), sendo afligido, ferido de Deus e oprimido (53,4), recebendo o castigo que nos traz a paz (53,5) e a nossa iniquidade que o Senhor fez cair sobre ele (53,6), aspectos que ressaltam tanto as temáticas do povo de Deus, sua expiação e o juízo divino.

Outro intertexto isaiânico que parece ter correlação com Daniel 8 é Isaías 59. Nesse capítulo, o juízo divino vem por causa da פֶּשַׁע (“rebelião”) do povo (59,12.20), por cometer violência (59,3), injustiças (59,4), desconsiderando a “verdade” (אֱמֶת), 59,14) e atacando os que permaneciam fiéis (59,15). Assim também, em Daniel 8,9-14 e 24, o juízo divino vem em resposta às ações do chifre pequeno que é descrito recebendo o exército e o contínuo “por causa da transgressão” (בְּפָשַׁע), deitando a “verdade” (אֱמֶת) por terra (cf. Dn 8,10) e destruindo o povo santo (cf. Dn 8,14). Além disso, a temática do santuário é referida diretamente no texto, ao ser descrita a separação entre o povo e Deus, por causa do seu pecado e a apostasia, o que levou ao abandono do sistema cúltico que era realizado no templo (cf. 59,1-2.16).

Outro aparente intertexto de Daniel 8 no livro de Isaías é a perícope dos capítulos 63,7-64,12[11]. Primeiro, em Isaías 63,18 há menção ao “povo santo” (עַם־קָדְשׁ) e em Isaías 64,9[8] ao “povo” (עַם), semelhantemente a Daniel 8,24 (עַם־קְדֹשִׁים, “povo santo”). Segundo, em Isaías 63,18 e 64,10-11[9-10] os termos מִקְדָּשׁ e קֹדֶשׁ são utilizados em referência ao santuário, assim como em Daniel 8,11 e 13-14. Além desses elementos, o intertexto de Isaías 63,7-64,12[11] também tem como foco as temáticas do santuário (Is 63,18; 64,10-11[9-10]), ao mencionar a destruição do santuário de Jerusalém, e do juízo divino (Is 63,1-6; 64,5-7[4-6]), ao mencioná-lo em relação as nações estrangeiras e o povo de Deus (Is 63,8-14; 64,8-12[7-11]).

Todos os intertextos de Daniel 8 no livro de Isaías parecem se assimilar ao que Genette classificou como intertextualidade por meio de alusão, ou seja, “um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro, ao qual necessariamente uma de suas inflexões remete”.44 Particularmente, os intertextos de Isaías 14,1-23 e 52,13-53,12 demonstram estarem ligados de forma ainda mais íntima com Daniel 8, sobretudo com a descrição do chifre pequeno (Dn 8,9-12.23-25).

Outros intertextos que aparentam ter correlação com o texto de Daniel 8 estão no livro de Ezequiel. Na visão de Ezequiel 1-3, o profeta está no meio dos exilados junto a um curso de água (rio Quebar, Ez 1,3; cf. Dn 8,2) e é relatado “e olhei, e eis que” (וָאֵרֶא וְהִנֵּה, Ez 1,4; cf. Dn 8,3). Ezequiel então contempla uma visão de seres celestiais (1,1-25; cf. Dn 8,15-19), surgindo em seguida um ser glorioso com aparência de homem (“esta era a aparência da glória de Deus”, Ez 1,28; cf. Dn 8,15). Ao ver tal ser, o profeta cai com o rosto em terra (עַל־פָּנַי)(וָאֶפֹּל)(וָאֶרְאֶה), Ez 1,28; Dn 8,17-18) mas, logo, é posto em pé por um agente angelical (Ez 2,2; cf. Dn 8,18). Esse ser celestial chama o profeta de “filho do homem” (Ez 2,3; cf. Dn 8,17).

Outro aparente intertexto seria a visão de Ezequiel 8-11, onde profeta encontra-se sentando em sua casa juntamente com os anciãos de Judá (8,1), não havendo nessa passagem menção a um curso de água diante do qual o profeta recebe a visão. Em seguida, é relatado “olhei, e eis que” (וָאֶרְאֶה וְהִנֵּה, Ez 8,2). O profeta vê então um ser celestial glorioso (8,2) que o transporta em visão para Jerusalém até o templo onde novamente ele vê a glória de Deus (8,3-4), assim como em Ezequiel 1-3. Após isso, o ser celestial chama o profeta de “filho do homem” (8,5). Posteriormente, o profeta também enxerga outros seres celestiais e o juízo de Deus sobre o povo (10-11). A visão de Ezequiel 8-11 apresenta sua clara ligação com a visão de Ezequiel 1-3 (cf. 10,15.20.22).

A ênfase na temática do santuário está presente em toda a visão, pois o profeta é levado ao templo (8,3), ele vê anciãos com seus incensários na mão (8,11), o altar (8,16), querubins (10,1) e há menção direta ao מִקְדָּשׁ (“santuário”, 11,16; mesmo termo utilizado em Daniel 8). Além disso, as temáticas do juízo e do povo de Deus são evidentes nessa sessão, pois são apresentadas as transgressões do povo (Ez 8) e ações de juízo sobre ele e sobre seus líderes (Ez 9 e 11).

Além dos intertextos mencionados acima, o texto de Ezequiel 20,6 e 15 parece ser também um importante intertexto de Daniel 8,9, visto que, junto com Jeremias 3,19, eles são os únicos textos da Bíblia Hebraica onde ocorre o termo צְבִי (“glória”, “glorioso”) como uma referência à terra de Israel, a terra prometida. Esses intertextos de Daniel 8 esclarecem o sentido do termo no verso 9 desse capítulo.

Outro aparente intertexto de Daniel 8 no livro de Ezequiel é a perícope de 28,1-19, onde o próprio profeta Daniel é mencionado nessa descrição (28,3), aspecto que evidencia uma possível conexão entre eles. Na primeira parte dessa perícope (28,1-10), o príncipe de Tiro é descrito em oposição a Deus, engrandecendo-se em seu coração e dizendo: “Eu sou Deus, sobre a cadeira de Deus me assento” (28,2.6). Na segunda parte (28,11-19), a descrição do rei de Tiro parece atingir um caráter cósmico, pois ele é agora descrito como o “sinete da perfeição, cheio de sabedoria e formosura” (28,12), tendo estado no “Éden, jardim de Deus” (28,13), tendo sido o “querubim da guarda ungido” e estabelecido por Deus (28,14), e perfeito em seus caminhos desde que fora criado (28,15). Todos esses aspectos demonstram uma associação entre poderes humanos, políticos e religiosos, com poderes não humanos, semelhantemente ao intertexto de Isaías 14. A descrição de Daniel 8,10-11, onde o chifre pequeno cresce até atingir os céus, lançando alguns do exército e das estrelas por terra, e procurando engrandecer-se até o Príncipe do exército, em correlação com Ezequiel 28,1-19 parece indicar, então, que o chifre pequeno do capítulo oito parece ser mais que um poder político-militar-religioso humano, implicando também num poder não-humano que estaria por detrás.

Essa ligação intertextual entre Daniel 8 e Ezequiel 28,1-19 parece ser ainda mais evidente, quando consideramos que o santuário é explicitamente mencionado por meio dos termos קֹדֶשׁ (“santuário”; cf. Dn 8,13-14; Ez 28,14) e מִקְדָּשׁ (“santuário”; cf. Dn 8,11; Ez 28,18) em ambos os textos. Além disso, a temática do juízo divino também é evidenciada nessa perícope quando as ações do príncipe/rei (cósmico) de Tiro trazem o julgamento da parte de Deus (28,7-10.15-19).

Outro aparente intertexto de Daniel 8 é a visão de Ezequiel 40-48, onde o profeta é levado pela mão do Senhor a Israel sobre um monte muito alto (40,2; cf. 8,1) e, logo em seguida, o profeta contempla um homem com aparência gloriosa (40,3) que o chama de “Filho do Homem” (40,4). A partir de então, na visão, o foco no santuário é claro, pois tal ser celestial passa por diversas partes do santuário e as mede como, por exemplo, o átrio exterior (40,17-19), o átrio interior (40,28-31), o Santo dos santos (41,4), o altar (41,22; 43,13-17), entre outras. Também são mencionados os sacerdotes (42,13-14; 43,18-27; 44,15) e orientações para o ofício dos mesmos (44,15-31), as ofertas de manjares, pela culpa e pelo pecado (42,13; 43,18-27; 45,17-25; 46), a aspersão de sangue (43,18), o povo (44,11; 45,9.15), o próprio santuário (מִקְדָּשׁ), 43,21; 44,1.8-9.11.15-16; 45,18; 47,12) e sua purificação (45,18).

Nessa visão, o profeta contempla a mesma glória de Deus que ele havia visto em outros momentos (Ez 43,4-5; cf. 1,28; 8,3-4; 10,4.18) e que o faz cair com o rosto em terra (וָאֶפֹּל אֶל־פָּנָיא), 1,28; 43,3; 44,4), estabelecendo assim uma inter-relação entre os capítulos. Após tal reação, o profeta é erguido por um agente celestial (43,5). É interessante destacar que, semelhante a Daniel 8,15-17, o profeta ouve uma voz e, logo após, um ser celestial se coloca ao seu lado (43,6). Nessa sessão, novamente é mencionada a visão de Ezequiel 1-3 junto ao rio Quebar (43,3; cf. 8-11).

Em relação aos textos de Ezequiel 15, 17, 19, 34,17 e 39,18, que foram indicados por Goldingay,45 e Ezequiel 12,27, que foi indicado por Hartman e Di Lella,46 os mesmos não parecem ser intertextos do oitavo capítulo de Daniel. O fato do primeiro bloco de textos usar alegorias não os torna necessariamente intertextos do texto daniélico, pois eles nada têm a ver com o conteúdo de Daniel 8. O mesmo se pode dizer do uso das palavras “carneiro” e “bode”, em Ezequiel 34,17 e 39,18, e לְיָמִים רַבִּים em Ezequiel 12,27, pois esses termos são usados ali em contexto totalmente distinto e sem relação com o uso deles no texto apocalíptico de Daniel.

As evidências textuais nos livros dos profetas do exílio indicam que existia certo conhecimento acerca da existência um dos outros e de suas obras literárias. Um exemplo seria Daniel 9,1, onde o profeta revela um conhecimento das obras e ministério do profeta Jeremias, ou Ezequiel 14,14 e 28,3, onde o profeta Ezequiel parece ter conhecimento do ministério do profeta Daniel. Nesse caso, o ponto de vista da presente pesquisa é de que esse Daniel é um judeu no exílio babilônico, e não o Dan’el mitológico da literatura do Antigo Oriente Próximo como alguns autores argumentam.47

Considerando a própria datação bíblica das visões, como em Ezequiel 1,1-2 (aprox. 593 a. C.), Ezequiel 8,1 (aprox. 592 a. C.), Ezequiel 40,1 (aprox. 573 a. C.) e Daniel 8,1 (aprox. 551 a. C.), percebe-se que as visões do profeta Ezequiel são cronologicamente anteriores às do profeta Daniel.48 Sendo assim, Ezequiel seria um intertexto em Daniel. Todos os intertextos de Daniel 8 no livro de Ezequiel parecem estabelecer uma intertextualidade por alusão.49

Além disso, os paralelos estruturais entre Ezequiel 1-3, 8-11 e 40-48 com Daniel 8 também nos permitem estabelecer uma arquitextualidade,50 considerando que todos são construídos por elementos como identificação geográfica, localização temporal, presença da expressão “ergui os olhos e vi e eis que”, visão de seres celestiais, visão da glória de Deus, reação de cair com o rosto em terra e ser erguido por um agente angelical, a denominação de “filho do homem” para o profeta e o foco das visões no povo de Deus, juízo divino e, especialmente, no santuário.

Outro intertexto que parece ser evidenciado no texto de Daniel 8 é Levítico 16. Em Levítico 16, as temáticas do santuário, vindicação do povo de Deus e juízo estão presentes assim como em Daniel 8. Os ritos do Yom Kippur ocorriam em favor do santuário e do povo, para que ambos fossem purificados anualmente de suas impurezas e pecados (Lv 16,16.30). Desse modo, o Dia da Expiação era também um ritual de juízo, pois o povo passava por esse rito de purificação, através da expiação pelo sangue, para comparecer diante do santo Deus.

Além das ligações temáticas entre ambas as passagens, há também uma correlação terminológica. Um ponto crucial na busca das correlações intertextuais de Daniel 8, na presente pesquisa, foi a constatação de uma inter-relação única entre Daniel 8 e Levítico 16 a nível léxico, onde as expressões עִירשָׂ (“bode”), עֹמֵד לִפְנֵי (“de pé diante”), אֶרֶץ (“terra”), עַם (“povo”), עֵז (“cabra”), קֹדֶשׁ (“santuário”), אַיִל (“carneiro”), קֶרֶן (“chifre”), מוֹעֵד (“tempo”), קָדוֹשׁ (“santo”), מִקְדָּשׁ (“santuário”), פֶּשַׁע (“rebelião”) que são comuns no AT, ocorrem todas juntas em uma mesma unidade literária/capítulo somente em Daniel 8 e Levítico 16, tornando esta ligação intertextual única, assemelhando-se ao que Genette classificou como intertextualidade por meio de alusão.51

Terminologias de Daniel 8 e os seus intertextos

Uma interessante expressão em Daniel 8 é צְפִיר־הָעִזִּים (Dn 8,5), que literalmente significa “bode dos caprinos” (normalmente é traduzida somente por “bode”), mas, entretanto, não está presente nos intertextos apontados, como Levítico 16 e os capítulos de Isaías e Ezequiel. Sua ocorrência na Bíblia Hebraica não é muito comum, sendo atestada na forma plural e sem artigo, צְפִירֵי עִזִּים (“bodes”), em Esdras 6,17 e 2 Crônicas 29,21, além de Daniel 8. Em Esdras 6,17, o termo é utilizado no contexto da inauguração do templo, após o retorno do povo do cativeiro babilônico e reconstrução do templo em Jerusalém. Uma grande quantidade de sacrifícios foi oferecida na dedicação do mesmo a Deus, incluindo doze צְפִירֵי עִזִּין (“bodes”).

Por sua vez, em 2 Crônicas 29,21, a expressão é empregada no contexto de restauração dos serviços do templo, quando o rei Ezequias o dedicou novamente e retomou as atividades realizadas ali, após o fechamento do mesmo e a interrupção de seus serviços, ocasionados pela apostasia do rei Acaz (2 Cr 28,22-25). Nessa cerimônia de restauração, entre os vários sacrifícios realizados, o rei Ezequias ofereceu sete צְפִירֵי עִזִּים (“bodes”).

Em relação aos usos de צָפִיר (“bode”) e עֵז (“cabra”) nessas passagens e em Daniel 8, nota-se que as ocorrências não são idênticas. Primeiro, pelo uso do artigo definido (הַצָּפִיר, “o bode”) em Daniel 8, indicando que o bode ali é um ente específico (8,5), enquanto Esdras 6,17 e 2 Crônicas 29,21 se referem a diversos bodes de forma genérica. Segundo, em Daniel 8, o bode mencionado não é apresentado para sacrifício, enquanto nas duas outras passagens os bodes são oferecidos em sacrifício na cerimônia de inauguração/restauração do santuário. Terceiro, em Daniel 8, a expressão é utilizada de forma metafórica para representar rei/reino (8,21), enquanto em Esdras 6,17 e 2 Crônicas 29,21, a mesma é utilizada de forma literal, referindo-se a bodes que foram oferecidos em sacrifícios.

Porém, apesar dos usos de צָפִיר (“bode”) e עֵז (“cabra”) nessas passagens serem diferentes, as temáticas de restauração, reconstrução e purificação do santuário que foi profanado/destruído/contaminado parecem apontar para uma possível relação intertextual entre eles. Daniel 8 aborda a contaminação/profanação do santuário pelo chifre pequeno e sua posterior justificação/purificação ao fim do período profético das 2300 tardes e manhãs. Esdras 6,17 apresenta a reconstrução e dedicação do templo após sua destruição por Babilônia, e 2 Crônicas 29,21 descreve a inauguração do templo após o período quando o mesmo foi fechado pelo rei Acaz. Logo, expressões e contextos semelhantes nas três passagens parece apontar para um possível intertexto de contaminação, profanação, ataque ao santuário e seu serviço, e destruição ou tentativa de destruição dele.

Além disso, outro aspecto em relação ao termo צָפִיר parece ser também pertinente, apesar do mesmo não ocorrer em Levítico 16, em Daniel 8 esse termo é intimamente ligado aos termos עֵז (“cabra”) e עִירשָׂ (“bode”), que ocorrem também em Levítico 16, o que parece reforçar a ligação intertextual entre esses dois textos da Bíblia Hebraica.

A força profanadora do santuário em Daniel 8 e em seus intertextos

Na visão de Daniel 8, a força profanadora do santuário é o chifre pequeno que se movimenta em ataque contra Deus, ao retirar do Príncipe do exército do céu o contínuo (תָּמִיד), 8,11, deitar abaixo o lugar de seu santuário (מִקְדָּשׁ), 8,11, jogar a verdade por terra (אֱמֶת); 8,12 e perseguir o povo de Deus (עַם), 8,10.24. Na descrição, o contínuo (תָּמִיד) é entregue ao chifre pequeno “por causa das transgressões” (בְּפָשַׁע) 8,12, e tais ações são descritas como “a transgressão desoladora” (הַפֶּשַׁע שֹׁמֵם), 8,13. Em Daniel 8, o chifre pequeno é colocado em paralelo com o carneiro e o bode (Dn 8,3-8), animais que são mencionados como metáforas de reis/reinos (Dn 8,20-21), para representar esse poder assolador/perseguidor do Príncipe do exército do céu e do povo dos santos do Altíssimo, dirigindo seus ataques ao santuário e seu serviço.

Carneiros e bodes, entretanto, eram animais utilizados no AT em sacrifícios de purificação (cf. Lv 4,22-24; 5,14-16), ao contrário do chifre pequeno descrito aqui em ações de profanação. Diante da ligação intertextual única entre Daniel 8 e Levítico 16, já observada anteriormente, os animais mencionados no capítulo não são utilizados com o objetivo de evocar ritos, mas sim como terminologias para evocar o contexto do Dia da Expiação. Essa intenção é visível na mudança no uso dos animais híbridos do capítulo 7 para animais cerimonialmente puros em Daniel 8, com o objetivo de representar os mesmos reis/reinos. Esse aspecto é ainda mais evidente quando consideramos que um bode e um carneiro eram apresentados como oferta dupla unicamente no ritual do Yom Kippur.52

Os textos paralelos de Daniel 7, 9 e 10-12 também abordam esse poder assolador, o apresentando como um “chifre pequeno” em Daniel 7, o “povo do príncipe que há de vir” e o “assolador” em Daniel 9, e o “rei do norte” em Daniel 11. Tal poder ataca o povo de Deus (7,21.25; cf. 8,10.24), destrói a cidade e o seu santuário (9,26), retira o contínuo e estabelece a transgressão assoladora (11,31; cf. 8,11-12). Além disso, ele é descrito com aspectos humanos (“olhos, como os de homem, e boca”; Dn 7,8), falando insolências contra o Altíssimo (cf. 7,11.25), engrandecendo-se contra Ele (cf. 11,36-38) e contra a santa aliança (11,22.30; cf. 8,25; 9,25-27).

Nos intertextos de Isaías, o foco está em poderes político-militares que se erguem contra Deus, em atitude de arrogância e orgulho, e que profanam o santuário, como a Assíria em Isaías 10,7-14 e a Babilônia em Isaías 14,1-23, 63,18 e 64,11[10]. Além desses, os intertextos de Isaías 52,13-53,12, 59 e 63,7-64,12[11] enfatizam a transgressão do povo, por meio da quebra da aliança com Deus, o que acarreta seu juízo. Em particular, a descrição de Isaías 14,12-15 do “rei [cósmico] de Babilônia” que exalta a si mesmo, buscando usurpar o lugar do próprio Deus e se assentar no “monte da congregação”, “nas extremidades do Norte”, ou seja, o próprio santuário celestial,53 e a ligação intertextual entre Daniel 8 e Isaías 52,13-53,12, por meio de terminologias específicas ligadas ao serviço de sacrifícios e de expiação realizados no santuário bíblico, revelam uma escala de rebelião cósmica e humana contra Deus e o seu santuário.

Nos intertextos de Ezequiel, a ênfase do texto está no pecado e abominações do povo e de seus líderes (idolatria, falsa adoração e intercessão profana; cf. Ez 8,11), que ocasionam a gradativa retirada da presença de Deus do santuário (cf. 8,3; 9,3; 10,4.18). Entretanto, o poder profanador que destrói o santuário é político, pois é o reino de Babilônia que vem em cumprimento às maldições da aliança descritas principalmente em Levítico 26 e Deuteronômio 28.

Além disso, o intertexto de Ezequiel 28,1-19, como em Isaías 14, apresenta um poder político-militar-religioso representado pelo “rei [cósmico] de Tiro” que não somente eleva o seu coração, afirmando ser Deus e se assentando na cadeira de Deus (cf. 28,2.5-6.9), mas que profana o santuário celestial com seu próprio pecado (cf. 28,13-16) e, ao ser expulso do mesmo, estabelece seus próprios santuários profanados em oposição ao santuário de Deus (cf. 28,18). Esse aspecto revela uma escala de rebelião cósmica e humana que envolvem tanto o problema do pecado quanto poderes político-religiosos que se levantam contra Deus.

Por fim, no intertexto de Levítico 16, a ênfase está no santuário que se encontra contaminado pelas impurezas do povo que se acumularam ali após os rituais realizados ao longo de todo o ano (Lv 16,16).

Diante da análise de Daniel 8 e seus intertextos, é evidente que as forças profanadoras do santuário mencionadas se referem tanto a um poder político-religioso como também ao problema fundamental do pecado. É interessante observar em Daniel 9, que a oração feita pelo profeta enfoca sobretudo no reconhecimento e confissão do pecado do povo e de seus líderes, como base para o pedido de libertação e restauração do exílio a eles imposto por poderes político-religiosos da época. Este aspecto indica que Daniel compreendia que as questões em foco na visão de Daniel 8 não eram limitadas somente ao nível político-religioso geral, mas estavam também ligadas ao problema fundamental do pecado e suas consequências para o povo de Deus (inclusive ao nível nacional, político, religioso, como o exílio, perseguição e morte).

Tal relação é ressaltada também na própria resposta divina na profecia das 70 semanas (Dn 9,24-27), visto que seu propósito é primeiramente focado no problema do pecado (9,24), na obra do Messias e Sua morte (9,26), na firme aliança que Ele faria com muitos (9,27), e no santuário, ao fazer cessar o sacrifício e a oferta na metade da semana (9,27). Por outro lado, na mesma profecia é descrito um poder assolador que viria para destruir a cidade e o santuário, e para provocar guerras e assolações até o tempo determinado (9,26), que corresponde ao tempo indicado de juízo em Daniel 7 e 8. Em Daniel 9, portanto, há um paralelo entre o pecado que profana e traz consequência sobre o povo, o santuário e seu serviço, com o poder político que também profana o santuário destruindo-o e atacando o povo de Deus.

Tais paralelos intertextuais de Daniel 8 apontam para a compreensão de que o poder profanador do santuário, além de ser compreendido em seu aspecto político-religioso, como é enfatizado nesse capítulo e em seus intertextos de Daniel 7, 9 e 10-12, Ezequiel 28, e Isaías 10,7-14, 14 e 63,7-64,12[11], também precisa ser compreendido em relação a uma força profanadora mais implícita que é o pecado humano e as suas consequências para o santuário e seu serviço, e para o destino do próprio povo de Deus, como indicam os intertextos de Daniel 9, Isaías 52,13-53,12, 59 e 63,7-64,12[11], Ezequiel 1-3, 8-11 e 40-48, e Levítico 16.54

Tal ênfase no poder profanador do pecado parece lançar luz ao uso da expressão בְּפָשַׁע em Daniel 8,12, onde há a possibilidade de traduzi-la como “por causa das transgressões”, o que poderia ser uma referência aos pecados do próprio povo,55 ou como “em/por transgressões”, sendo uma referência ao modus operandi do próprio chifre pequeno (o pecado como o poder que o capacita a agir ou sendo a sua própria forma de agir), ou, também, como “por causa de transgressões”, como uma referência aos pecados que o chifre pequeno leva o povo a realizar.56

Em Daniel 8,12, o termo פֶּשַׁע (“rebelião”) tem aparentemente um sentido universal, podendo à luz de Daniel 8 e de seus intertextos, se referir à questão do pecado da humanidade e de sua rebelião contra Deus. Na sequência do texto, no entanto, o termo aparece relacionado diretamente ao chifre pequeno, o qual é designado como הַפֶּשַׁע שֹׁמֵם (“a transgressão assoladora”) em Daniel 8,13, e, posteriormente, também há menção aos הַפֹּשְׁעִים (“transgressores”, 8,23).

Interessantemente, no intratextos de Daniel 9, a rebelião do povo e a quebra da aliança são o motivo pelo qual o povo se encontra no exílio (Dn 9,1-19), sendo Deus Aquele que traz o perdão para tais ações. O termo פֶּשַׁע (“transgressão, rebelião”) não ocorre na oração de Daniel, mas ocorre na profecia das 70 semanas, onde é mencionado: para dar fim a rebelião (פֶּשַׁע), para selar o pecado (חַטָּאת) e para expiar a iniquidade ( עָוֹן), 9,24, ações que tem por propósito solucionar o problema do pecado e rebelião do povo de Deus, bem como de toda a humanidade. Tal descrição está correlacionada com Daniel 8, mas também, com os intertextos de Levítico 16,21, Isaías 52,12-53,12 e 59,12, onde os três termos (פֶּשַׁע), חַטָּאת e עָוֹן aparecem juntos, como em Daniel 9,24. Além disso, a utilização de tais termos de forma conjunta faz alusão à outras passagens que ressaltam o caráter perdoador de Deus, como em Êxodo 34,7 e Salmos 32,5.

Diante dessas considerações, a expressão בְּפָשַׁע em Daniel 8,12 parece indicar uma íntima correlação entre pecado e poder político-religioso no tema da força profanadora do santuário.

O juízo divino e o Yom Kippur em Daniel 8 e em seus intertextos

Em Daniel 8, a maneira insolente e violenta com a qual o chifre pequeno age, engrandecendo-se até os céus em oposição a Deus, retirando o “contínuo” (תָּמִיד), derrubando a base do santuário (מִקְדָּשׁ); 8,11, jogando a verdade por terra (אֱמֶת); 8,12 e pisoteando o povo de Deus (רָמַס), 8,10, requer uma resposta divina. Assim sendo, após o questionamento de um ser celestial sobre a duração de tais ações profanadoras (8,13), é afirmado que elas durarão 2300 tardes e manhãs. Também é informado que após esse período profético, o santuário será justificado/vindicado/purificado (נִצְדַּק), 8,14, ou seja, Deus começaria o seu juízo.

No intertexto de Daniel 7, é descrita uma cena de juízo que claramente ocorre no céu, pois o profeta vê o trono de Deus e outros tronos estabelecidos (7,9), um rio de fogo que mana do trono divino (7,10) e miríades e miríades de anjos (7,10). O Ancião de Dias se assenta no céu para julgar (7,9-10.22) e esse juízo é apresentado por meio de quatro ações principais. Primeiro, semelhante a descrição de Daniel 8, o julgamento e execução do chifre pequeno ocorrem como consequência de todas as suas ações (7,11.22.26). Segundo, quando o tribunal se assenta para julgar, o julgamento é feito com base nos registros dos livros do céu (7,10).57 Terceiro, o juízo envolve o Filho do Homem, que recebe do Ancião de Dias o domínio, o reino e a glória para que todos os povos o servissem para sempre (7,13-14). Quarto, no juízo o povo de Deus é justificado, sendo conferido a eles o reino, o domínio e a majestade dos reinos para sempre (7,18.22.27).

Em Daniel 9, não há uma menção explícita ao juízo divino, mas há uma referência implícita ao tempo determinado para o juízo em Daniel 9,27, onde é afirmado que o assolador atuaria até que a destruição que está determinada se derramasse sobre ele. Esse tempo de atuação do poder assolador é descrito em Daniel 7,25, quando é afirmado que os santos lhe seriam entregues por “um tempo, dois temos e metade de um tempo”, tempo profético que é novamente repetido em Daniel 12,7.

Em Daniel 10-12, o juízo é mencionado ao descrever que um rei atuaria contra o monte santo, mas chegaria ao seu fim sem obter socorro (Dn 11,45; cf. Dn 7,26 e 8,25). O juízo divino também é referido na descrição de que Miguel se levanta para vindicar o povo de Deus, ou seja, todo aquele que se encontra no livro (12,1-2; cf. 7,10). Nessa visão, há novamente o questionamento “até quando?” (12,6; cf. 8,13-14), e a resposta dada é que após “um tempo, dois tempos e metade de um tempo” ocorreria tanto o fim da destruição do poder do povo santo, quanto um juízo que viria após este (12,7). Também é declarado ao profeta que feliz é aquele que chega até o tempo da execução do juízo divino (12,12).

Nos intertextos do livro de Isaías, a temática do juízo é descrita por meio do juízo divino que cai sobre o povo de Deus, por terem eles quebrado a aliança (10,5-6.12.24; 14,3.5-11; 59,1-21; 63,7-14.18-19; 64,5-7[4-6].10-12[9-11]), resultando na destruição de Jerusalém, do templo e no exílio (63,18; 64,10-11[9-10]). Além disso, Deus também é descrito executando juízo sobre as nações estrangeiras que oprimiram o seu povo e agiram de forma presunçosa, até mesmo contra Ele (10,7-19.25-34; 14,12-15.22-23).

No juízo descrito nesses intertextos, a condenação é dada conforme as obras feitas (59,18), há oportunidade de salvação para os que se converterem da פֶּשַׁע (“transgressão/rebelião”, 59,20) e nesse processo de julgamento, também há a vindicação do povo de Deus (10,20-27; 14,1-3; 59,15-21), diretamente ligada ao juízo que cai sobre o Servo do Senhor, que foi oferecido por Deus e ofereceu a si mesmo como sacrifício por nós, levando nossa culpa e sofrendo nossa pena (52,13-53,12). É interessante notar que há um paralelo muito forte entre a ação de usurpação do chifre pequeno de Daniel 8 com a do “rei [cósmico] de Babilônia” de Isaías 14, onde ambos são condenados e executados como resultado do juízo (Dn 8,25 e Is 14,15).

Nos intertextos de Ezequiel 1-3 e 8-11, o juízo divino é direcionado ao povo de Israel (2,3-4), que é descrito cometendo grandes abominações e profanando o santuário (cf. 8,5-17; 9,8-9; 11,12). O pecado do povo faz com que o juízo divino comece a ser executado, sendo marcados todos que não se envolveram na apostasia que reinava entre o povo, e condenando a morte todos os que não houvessem sido marcados, a começar pelos que se encontravam no santuário (9,1-7). A oportunidade de salvação é dada a cada pessoa que se arrependesse (cf. 3,16-21; 11,16-21), pois elas seriam julgadas conforme as suas obras (cf. 9,8; 11,14-15).

No intertexto de Ezequiel 28,1-19, o juízo divino recai sobre o príncipe de Tiro que pretensiosamente considerou a si mesmo como sendo Deus (28,2.5-6.9), que é condenado à morte por determinação divina (28,7-10). Além disso, Deus também condena o “rei [cósmico] de Tiro” que fora criado por Deus e possuía posição de honra (28,14-15), mas que pecou e encheu-se de violência (28,15-16), e orgulhou-se (28,17), o que faz com que Deus o lance fora do monte do santuário (28,14.16), sendo consumido pelo fogo (28,18) e jamais subsistindo (28,19). É novamente interessante notar que há um paralelo muito forte entre a ação de usurpação do chifre pequeno de Daniel 8 com a do “rei [cósmico] de Tiro”, onde ambos são condenados e executados como resultado do juízo.

No intertexto de Ezequiel 40-48, onde é dada a descrição do santuário que deveria ser reconstruído após o retorno do exílio, o tema do juízo aparece ligado à data dada para essa visão. Diversos estudiosos têm apontado, com base no calendário outonal e no uso da expressão רֹאשׁ הַשָּׁנָה (cf. Ez 40,1), que a data da visão (décimo dia do sétimo mês) corresponde ao Yom Kippur, o Dia da Expiação, quando o santuário era anualmente purificado (cf. Lv 16).58

O intertexto de Levítico 16 também evoca o juízo do Yom Kippur, que ocorria para purificar o povo de seus pecados (16,16.33) e, também, o santuário que recebera os pecados do povo ao longo do ano. Durante o rito, o povo era orientado a permanecer em aflição de alma, clamando pelo perdão divino (16,29.31). Os que agiam assim eram purificados de seus pecados, mas os que não confessavam seus pecados e não se humilhavam perante Deus, eram eliminados do meio do povo (cf. Lv 23,29). O ritual do Yom Kippur era a única assembleia de culto do povo de Israel onde a פֶּשַׁע (“rebelião”) era removida (cf. Lv 16,16.21; Dn 8,12.13).59

No ritual do Yom Kippur, um bode era separado para o Senhor e outro para Azazel (cf. 16,7-10), sendo o primeiro sacrificado como substituto pelos pecados do povo que suplicava pelo perdão, e o segundo recebia os pecados do povo sobre si e era enviado para vagar no deserto até morrer (cf. 16,2-22). Esse momento do ritual do Yom Kippur, relacionado ao bode Azazel, parece representar também o juízo divino sobre um poder demoníaco, que era expulso para morrer no deserto e remover o pecado do meio do povo.60

Diante da análise de Daniel 8, compreendeu-se que o juízo descrito no capítulo se refere a justificação do santuário e a condenação das forças profanadoras que se opõe a Deus. O intertexto de Daniel 7 também apresenta a condenação dessas forças, mas acrescenta que esse juízo ocorre no céu e tem por ações o recebimento do reino pelo Filho do Homem e a vindicação do povo que também recebe o reino. O intertexto de Daniel 9 expõe que há um tempo determinado para o juízo (cf. 7,25; 8,14; 9,27; 12,7) e Daniel 10-12 explana que a ação final desse juízo será a vinda de Miguel para livrar o povo do ataque final das forças do mal (cf. 11,45), inclusive ressuscitando os salvos mortos para dar-lhes a vida eterna.

Os intertextos de Isaías 10,5-34, 59 e 63,7-64,12[11] não tratam tanto de um juízo escatológico, mas sim sobre um juízo sobre o povo, como resultado da quebra da aliança, que se deu por meio da destruição da cidade de Jerusalém, do templo e do exílio babilônico, e sobre outras nações estrangeiras. Mas, existem alguns aspectos no juízo descrito nesses intertextos que nos ajudam a compreender o juízo nos demais, como o julgamento divino sobre todos (seu povo e as demais nações), a oportunidade de salvação para os que se converterem, a implicação da vindicação do povo de Deus no processo judicial, especialmente por meio do sacrifício do Servo do Senhor, e a condenação das forças que se opõem a Deus.

Por sua vez, o intertexto de Isaías 14 apresenta um juízo sobre Babilônia, mas também um juízo que vai além, sobre o “rei [cósmico] de Babilônia”, que busca usurpar o trono de Deus. Além disso, o intertexto de Isaías 52,13-53,12 aponta também para um juízo que caí sobre o Servo do Senhor para a redenção de muitos, por meio de sua entrega vicária e expiação dos pecados, aspectos que conectam esse intertexto com o de Levítico 16.

Assim como os intertextos de Isaías, os intertextos de Ezequiel 1-3 e 8-11 concentram-se em um juízo sobre o povo que se deu por meio da destruição da cidade de Jerusalém, do templo e no exílio babilônico. Mas, também existem alguns aspectos nesse juízo a serem ressaltados, como a vinda do trono de Deus que evoca uma cena de juízo61 e o selamento daqueles que se mantiveram fiéis a Deus, o que implica em sua salvação (cf. Ez 9,3-7). Além disso, o intertexto de Ezequiel 28 apresenta um juízo que recaí sobre o “rei [cósmico] de Tiro”, ligado ao problema fundamental do pecado, e atingindo proporções cósmicas.

O intertexto de Ezequiel 40-48 aponta para o juízo do Yom Kippur, por meio da data do décimo dia ligada à expressão רֹאשׁ הַשָּׁנָה. O dia do Yom Kippur é também a ênfase do intertexto de Levítico 16, onde o juízo lida tanto com o problema do pecado quanto com as forças demoníacas que estão em oposição a Deus. Esse mesmo aspecto parece estar presente no juízo descrito em Daniel 8 tanto em relação ao pecado quanto em relação as forças profanadoras descritas ali. Esse aspecto parece ser ainda mais evidente ao considerarmos que a פֶּשַׁע (“rebelião”) era removida somente no ritual do Yom Kippur, palavra essa que descreve as ações do chifre pequeno em Daniel 8.

Assim sendo, o estudo de Daniel 8 e os seus intertextos apontam para o ritual do Yom Kippur, como o evento descrito no capítulo, especialmente na purificação descrita em 8,14. Diante dos demais intertextos de Daniel 8, tal juízo ocorre em um tempo determinado no céu e implica na justificação do santuário, na condenação das forças que o profanaram e na vindicação do povo.

Conclusões

O foco principal da investigação se limitou à busca dos possíveis intertextos canônicos de Daniel 8 e à análise de como eles se manifestam na sua trama textual. Para tal investigação, analisou-se este capítulo dentro de sua perspectiva intertextual canônica, tomando-o em sua forma final, a partir da proposta estruturalista sugerida por Genette e de uma leitura atentiva do texto (close reading). Por fim, se explorou brevemente as possíveis implicações desses intertextos para a compreensão das temáticas da força profanadora do santuário e do juízo divino em Daniel 8.

Considerando a datação do livro de Daniel fornecida no próprio texto bíblico, foram abordados, então, somente os intertextos da Bíblia Hebraica, que segundo a tradição judaico-cristã, seriam anteriores ou contemporâneos ao texto de Daniel e ao período do Exílio Babilônico. Ao revisar a literatura, notou-se que os principais intertextos canônicos de Daniel 8 apontados no meio acadêmico são: 1) Daniel 7, 8, 9 e 10-12; 2) Isaías 10, 14, 41, 52-53, 59 e 63-64; 3) Ezequiel 1-3, 8-11, 15, 17, 19, 28, 34,17 e 40-48; e 4) Levítico 16.

A partir disso, procurou-se analisar o texto de Daniel 8 e verificar a presença desses intertextos em sua trama textual. Primeiro, constatou-se uma ligação intratextual entre Daniel 8 e os capítulos 2, 7, 9 e 10-12, sendo o último também um arquitexto. Segundo, constatou-se ligações intertextuais entre Daniel 8 e Isaías 10,5-34, 14, 59 e 63,7-64,12[11]. Terceiro, constatou-se uma relação arquitextual entre Daniel 8 e os intertextos de Ezequiel 1-3, 8-11 e 40-48, e uma intertextualidade por citação com Ezequiel 20,6 e 15 e por alusão com Ezequiel 28,1-19.

Quarto, ao verificar a existência de uma intertextualidade entre Daniel 8 e o livro de Isaías, foi constatada uma ligação intertextual única entre Daniel 8 e Isaías 52,13-53,12, onde os termos פֶּשַׁע (“rebelião”), רַבִּים (“muitos”), עַם (“povo”), מִרְמָה (“engano”), עָצוּמִים (“poderosos”), צָלַח (“prosperar”) ocorrem conjuntamente em uma mesma unidade literária em toda a Bíblia Hebraica somente nessas duas perícopes.

Quinto, da mesma forma, ao também verificar a existência de uma intertextualidade entre Daniel 8 e Levítico 16, foi constatada uma relação intertextual única entre estes textos, por meio de terminologias, como פֶּשַׁע (“rebelião”), עִירשָׂ (“bode”), עֹמֵד לִפְנֵי (“de pé diante”), אֶרֶץ (“terra”), עַם (“povo), עֵז (“cabra”), קֹדֶשׁ (“santuário”), אַיִל (“carneiro”), קֶרֶן (“chifre”), מוֹעֵד (“tempo”), קָדוֹשׁ (“santo”), מִקְדָּשׁ (“santuário”), que ocorrem conjuntamente em uma mesma unidade literária em toda a Bíblia Hebraica somente em Daniel 8 e em Levítico 16.

Se fôssemos analisar a autoria de tais escritos simplesmente da perspectiva humana, Daniel estaria meramente utilizando-se de alusões aos escritos de Isaías, Ezequiel e Levítico. Porém, diante da vindicação do próprio texto de que as visões são de autoria divina, as relações intertextuais entre as visões de Daniel e Ezequiel, bem como com os outros escritos bíblicos, seriam praticamente um “intratexto” canônico.

Além disso, as temáticas presentes em Daniel 8 e nesses intertextos também contribuem para a interpretação do mesmo. Primeiro, a temática da força profanadora do santuário nos levou à compreensão de que a mesma, em Daniel 8, se refere tanto a um poder político-militar-religioso, que profana o santuário destruindo-o e atacando o povo de Deus, como também ao problema fundamental do pecado que profana e traz consequência sobre o povo, o santuário e seu serviço.

Segundo, a temática do juízo nos levou a compreender que, em Daniel 8, especificamente no verso 14, o juízo que ocorre no céu é o Yom Kippur e a descrição não faz referência ao festival judaico do Hanukkah, como alguns acadêmicos sugerem. Tal juízo tem por ações a justificação do santuário, a condenação das forças que se opõe a Deus, o recebimento do reino pelo Filho do Homem, a vindicação do povo de Deus, lidando assim, de forma satisfatória, direta e definitiva com o problema fundamental do pecado.

Ao se concluir esta investigação, é evidente a necessidade de uma reavaliação do que são realmente intertextos de Daniel 8, bem como a verificação da existência de outros intertextos canônicos ainda não apontados pelo meio acadêmico e a implicação de tais intertextos para outras temáticas presentes em Daniel 8 que não foram abordadas nessa pesquisa.

Referências

1 Para Scheetz, intertextualidade canônica é “the dialogue inherent in the canonical text because of the canon and canonical process”. Nessa abordagem, “texts exegete one other through their order and overall placement together, giving a big Picture that would not have been possible if textual units had been left by themselves”, ver Jordan M. Scheetz, The concept of canonical intertextuality and the book of Daniel (Cambridge, GB: James Clarke & Co, 2011), 33-34.

2 Gérard Genette, Palimpsestos: a literatura de segunda mão (Belo Horizonte, BR: Viva Voz, 2010), 13-20.

3 Em seu estudo intertextual do livro de Daniel, Scheetz dedica poucas páginas ao oitavo capítulo. Da mesma forma, Kim em sua tese doutoral nem sequer trata do capítulo; ver Scheetz, The concept of canonical intertextuallity and the book of Daniel; Daewoong Kim, “Biblical interpretation in the book of Daniel: Literary allusions in Daniel to Genesis and Ekeziel” (tesis doutoral, Rice University, Houston, Texas, 2013).

4 Scheetz, The concept of canonical intertextuality and the book of Daniel, 97.

5 Ibid., 97-103.

6 Ibid., 106, 110-115, 121-126.

7 Robert M. Poole, Annotations upon the Holy Bible, vol. 2 (New York, NY: Robert Carter and Brothers, 1853), 833.

8 John C. Whitcomb, Daniel (Chicago, IL: Moody Press, 1985), 108; Stephen R. Miller, Daniel, New American Commentary 18 (Nashville, TN: Broadman & Holman Publishers, 1994), 220-221; D. E. Gowan, Daniel (Nashville, TN: Abingdon Press, 2001), 81; Carol A. Newson, Daniel: A commentary (Louisville, KY: John Knox Press, 2014), 233.

9 Louis F. Hartman e Alexander A. Di Lella, The book of Daniel (Garden City, NY: Doubleday, 1974), 227, 229, 233.

10 Johann P. Lange et al., A commentary on the Holy Scriptures: Daniel (Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2008), 2, 5.

Referências

16 Norman W. Porteous, Daniel: A commentary, The Old Testament Library (Philapelphia, PA: The Westminster Press, 1965), 124.

18 Matthew Henry, Matthew Henry’s commentary on the whole Bible: Complete and unabridged in one volume (Peabody, MA: Hendrickson, 1994), 1449; Robert Jamieson, Andrew R. Fausset e David Brown, Commentary critical and explanatory on the whole Bible, vol. 1 (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, 1997), 637.

20 Newson, Daniel, 264.

22 Jacques B. Doukhan, The vision of the end (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1987), 17-31; Jacques B. Doukhan, Segredos de Daniel: Sabedoria e sonhos de um príncipe no exílio (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2018), 125-138; William H. Shea, Daniel: A reader’s guide (Nampa, ID: Pacific Press, 2005), 182-195; C. M. Maxwell, Uma nova era segundo as profecias de Daniel, 2ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2009), 185-186; G. F. Hasel, “O ‘chifre pequeno’, o santuário celestial e o tempo do fim: Um estudo de Daniel 8:9-14”, em Estudos sobre Daniel: Origem, unidade e relevância, ed. por F. B. Holbrook (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2009), 315-343; Elias B. Souza, O livro de Daniel: Uma profecia para o nosso tempo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2019), 80-88.

23 “Puede parecer extraño, al principio, llamar la atención hacia el libro de Levítico en medio de una discusión sobre un libro profético como Daniel. Levítico es un libro de leyes, no profecía. Pero cuando uno considera la naturaleza del contenido de esta profecía, puede verse con mayor claridad cómo estas dos fuentes se conectan. Se conectan a través del Santuario. Daniel 8 es, en última instancia, una profecía acerca del Santuario. Levítico es un libro de leyes y regulaciones de lo que sucedía en el Santuario terrenal. Por lo tanto, hay una conexión natural, lógica entre estos dos libros, y ese enlace se ve reforzado por la naturaleza de los símbolos utilizados en Daniel 8”. Ver William Shea, Daniel: Una guía para el estudioso, ed. por Miguel Valdivia, 1ª ed. (Buenos Aires, AR: Asociación Casa Editora Sudamericana, 2010), 188.

24 Ver Shea, Daniel, 189; e Hasel, “O ‘Chifre pequeno’, o santuário celestial e o tempo do fim”, 343.

25 Hasel, “O ‘Chifre pequeno’, o santuário celestial e o tempo do fim”, 343.

26 Doukhan, Segredos de Daniel, 129-130.

27 Ibid., 130.

28 Ibid.

29 Ibid.

30 “Undoubtedly this special concern to isolate and underline the association of the two animals (the ram and the goat) in order to covey a hint of the Day of Atonement was to prepare the ground for the follow-up. Indeed, in the extension of this passage, at the climax of the vision, there is a direct reference to the Day of Atonement. The prophet speaks in Daniel 8:14 of the cleansing of the sanctuary. It is significant that the obscure expression niṣdaq, which literally means ‘be reinstated in its rights,’ has been translated by the Septuagint as the ‘cleansing’ (katharisthesetai) of the sanctuary. The scholars of the Septuagint had understood this passage as a reference to the Day of Atonement, the very day when the sanctuary was cleansed (Lev. 16:19, 30)”. Ver Doukhan, The vision of the end, 29.

31 Souza, O livro de Daniel, 80.

32 Ibid.

33 Ibid.

34 Ibid., 79.

36 Entre os intertextos não canônicos de Daniel 8 que são evocados no meio acadêmico, se destacam: 1) os livros de 1 e 2 Macabeus (ver Hartman e Di Lella, The book of Daniel, 43-44; Goldingay, Daniel, 207-219; Miller, Daniel, 228; Newsom, Daniel, 262-273); 2) o apocalipse de 1 Enoque (ver Hartman e Di Lella, The book of Daniel, 62-63; Goldingay, Daniel, 200; Newsom, Daniel, 258, 263, 268); e fora do contexto judaico no Antigo Oriente Médio), 3) o Zodíaco, segundo o qual a Pérsia estaria sob signo do carneiro e a Síria (império selêucida) sob o do bode, e os omens babilônicos para o simbolismo dos chifres (ver Goldingay, Daniel, 208-209; John H. Walton, Victor H. Matthews e Mark W. Chavalas, Comentário histórico-cultural da Bíblia: Antigo Testamento [São Paulo, BR: Vida Nova, 2018], 966).

37 Scheetz, The concept of canonical intertextuality and the book of Daniel, 103.

38 Genette, Palimpsestos, 14.

40 Genette, Palimpsestos, 60.

41 Souza, O livro de Daniel, 231-233.

42 A expressão “alturas do Zafom” (o extremo norte) é “uma expressão idiomática que designa as alturas celestiais da habitação de Deus”, conforme ocorre em Isaías 14,13 e também em Salmos 48,1-2. Seu paralelo com o “monte da congregação” traz a ideia de um santuário celestial; ver Doukhan, Segredos de Daniel, 183.

43 Newsom, a partir de seu ponto de vista, também notou as diferenças existentes entre Daniel 8 e Isaías 14, sugerindo ou que Daniel usou outra versão desconhecida daquilo que ela considera ser o “mito” de Isaías ou que o autor de Daniel teria feito acréscimos ao mesmo; ver Newson, Daniel, 264.

44 Genette, Palimpsestos, 14.

46 Hartman e Di Lella, The book of Daniel, 229.

47 Para tal discussão, cf. Harold P. Dressler, “The identification of the Ugaritic Dnil with the Daniel of Ezekiel”, Vetus Testamentum 29, n. 2 (1979): 152-161; Lamar Eugene Cooper, Ezekiel, The New American Commentary 17 (Nashville, TN: Broadman & Holman Publishers, 1994), 163-164.

48 Ver Cooper, Ezekiel, 57; Samuel J. Schultz, “Ezequiel: Atalaia de Israel”, em A história de Israel do Antigo Testamento (São Paulo, BR: Vida Nova, 2009), 423.

49 Genette, Palimpsestos, 14.

50 Ibid., 17.

51 Ibid., 14.

52 Doukhan, Segredos de Daniel, 130.

53 Sobre o uso dessa expressão idiomática “nas extremidades do Norte” (יַרְכְּתֵי צָפוֹן), cf. Souza, O livro de Daniel, 225-242 e Doukhan, Segredos de Daniel, 183.

45 Ver Goldingay, Daniel, 203. Newson (Daniel, 260) também evoca o intertexto de Ezequiel 34,17.

56 Hasel, “O ‘chifre pequeno’, o santuário celestial e o tempo do fim”, 311-381.

57 Conforme reitera Souza, “os livros mencionados em conexão com o juízo provavelmente sejam os livros de registros, ‘nos quais estão relatados os nomes e ações dos homens’. As Escrituras mencionam o ‘Livro dos vivos’ (Sl 69:28[29]), o livro ‘como memorial’ (Ml 3:16, NVI; ver Ne 13:14) e o livro de Deus (Êx 32:32; Sl 56:8)”; cf. Souza, O livro de Daniel, 75.

58 Young também apresenta que a provável data da visão seria no dia 10 de Tishri de 574 a. C. Por sua vez, os estudiosos Cooper e Dyer entendem que a data mais provável seria 22 de outubro de 573 a. C. Os estudiosos citados afirmam que essa também seria a data de um Jubileu: ver Young (2006, pp. 266-283); Cooper, Ezekiel, 355; C. H. Dyer, “Ezequiel”, em The Bible knowledge commentary: An exposition of the scriptures, vol. 1, ed. por J. F. Walcoord e R. B. Zuck (Wheaton, IL: Victor Books, 1985), 1304.

59 Cf. E. Carpenter e M. A. Grisanti, “פֶּשַׁע”, em Novo dicionário internacional de teologia e exegese do Antigo Testamento 3, org. W. A. Vangemeren (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2011), 1129.

60 Wright e Leal defendem que, levando em consideração o contexto bíblico e o pano de fundo cultural, a melhor compreensão do termo hebraico עֲזָאזֵל (‘ăzā’zēl) seria a de um nome próprio (“Azazel”) em referência a um ser sobrenatural e demoníaco; ver David Wright, “Azazel”, em The Anchor Bible dictionary, ed. por D. N. Freedman (New York, NY: Doubleday, 1996), 536; J. M. Leal, “Bodes ou demônios: uma nota sobe o termo ‘azāzēl em Levítico 16:8”, Revista de Teologia e Ciência da Religião da UNICAP 4, n. 1 (2014): 349-351.

61 William H. Shea, “Dimensões especiais na visão de Daniel 8”, em Estudos sobre Daniel: Origem, unidade e relevância, ed. por F. B. Holbrook (Engenheiro Coelho, BR: Unaspress, 2009), 411.

Notas

11 11 Goldingay, Daniel, 203, 208-209.
12 12 “The vision is located at a gate opening toward a waterway, in the tradition of Ezekiel’s vision by the Kebar canal (cf. 10:4; 12:5-7; 1 Enoch 13:7-8; also Pharaoh’s dream set at a river, Gen 41); it presupposes a visionary journey such as Ezekiel also experienced”; ver ibid., 208.
13 Ibid., 203.
14 Ibid., 208-209.
15 Newson, Daniel, 260, 265, 268-269.
17 Goldingay, Daniel, 202-203.
19 Gowan, Daniel, 80.
21 Goldingay, Daniel, 202-203, 209.
35 A datação de Daniel para o período dos Macabeus (2° séc. A. E. C) é comumente aceita no meio acadêmico. No entanto, dados históricos, linguísticos e textuais favorecem mais a datação do livro para o período do exílio babilônico (6° séc. A. E. C). Alguns desses dados são: primeiro, o extenso e preciso conhecimento histórico do autor de Daniel ao citar, por exemplo, Nabucodonosor como o construtor da Babilônia (Dn 4,30) e o rei Belsazar (Dn 5) como rei corregente no final do império neobabilônico, informações essas de impossível acesso a um escritor do 2° séc. A. E. C e que foram comprovadas por descobertas arqueológicas relativamente recentes; segundo, é altamente improvável que os manuscritos de Daniel descobertos em Qumran, se produzidos no 2° séc. A. E. C, tivessem sido aceitos pela comunidade e copiados juntamente com os outros livros do AT menos de cinquenta anos após sua composição; terceiro, o aramaico de Daniel é basicamente o mesmo de Esdras e do aramaico do séculos VI e V, não se conformando com amostras posteriores da língua. Para uma discussão mais detalhada, cf. Miller, Daniel, 22-43 e Hasel, “Estabelecendo uma data para Daniel”, 67-131.
39 Em Daniel 8, a descrição dos versículos 14 e 26 distinguem a visão das 2300 tardes e manhãs de todo o restante da visão apresentada no capítulo, por meio da diferenciação no uso dos termos marʾeh e ḥāzôn. A explicação para a ḥāzôn é dada nos versos 18-25, enquanto a marʾeh deve ser preservada pelo profeta sem uma interpretação clara. Em Daniel 9,23, Gabriel vem com a missão de fazer o profeta entender a marʾeh das tardes e manhãs (Dn 8,14): “... considera, pois, a coisa e entende a marʾeh.”
54 Essa relação intertextual mais implícita de “pecado, profanação do santuário e contaminação” provavelmente pode estar na base da leitura feita do texto de Daniel 8,14 na Septuaginta onde נִצְדַּקוְ (“será justificado, será vindicado”) é traduzido por καθαρισθήσεται (“purificar”), indicando uma correlação de Daniel 8 e Levítico 16 na compreensão do tradutor.
55 Davidson, “The meaning of Nisdaq in Daniel 8:14”, 116.

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