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O persistente desafio do Homo brasiliensis

El persistente desafío del Homo brasiliensis

The Persistent Challenge of the Homo brasiliensis

Nilo Reiss
Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil

O persistente desafio do Homo brasiliensis

Enfoques, vol. XXXI, núm. 2, 2019

Universidad Adventista del Plata

Recepción: 22 Mayo 2017

Aprobación: 22 Enero 2018

Resumo: Afirmar-se no cenário internacional como uma nação moderna é um dos grandes desafios dos países sulamericanos na era da globalização de mercados e esse desejo também impulsiona o Brasil. No entanto, existiram condições socioeconômicas e culturais na fundação desse país que ainda repercutem nas ações e opções político-econômicas do presente, e esta dimensão histórico-cultural, orientada pelo atual olhar individualista, resultante de uma tradição patrimonialista, privilegia a personificação de interesses de uma minoria em detrimento de um todo coletivo, gerando as consequências práticas que contribuem a formação do “jeitinho brasileiro”. Conduzido por fontes literárias, esse ensaio voltar os olhos ao passado para compreender esta característica brasileira de “pessoalizar” a coisa pública, em uma confluência de elementos históricos, políticos e culturais que informam o modus operandi do Homo brasiliensis e são refletidos no atual momento histórico.

Palavras-chave: Homo brasiliensis, Literatura, Política, Cordial, Impessoalidade.

Resumen: Afirmarse en la escena internacional como una nación moderna es uno de los grandes retos de los países de América del Sur en la era de la globalización de mercados, y este mismo deseo impulsa también a Brasil. Sin embargo, hay condiciones económicas y culturales en la fundación de este país que aún se reflejan en las acciones y las opciones políticas y económicas del presente, y esta dimensión histórico-cultural, orientada por una mirada individualista, resultado de una tradición patrimonialista, favorece la personificación de los intereses de una minoría a expensas de un todo colectivo, que generó consecuencias prácticas para la formación del denominado “jeitinho brasileiro”. Orientado por fuentes literarias, este ensayo pretende mirar hacia atrás, al pasado, para entender esta característica brasileña de personalización de los asuntos públicos, en una confluencia de elementos históricos, políticos y culturales que informan el modus operandi del Homo brasiliensis, y es reflejado en el actual momento histórico.

Palabras clave: Homo brasiliensis, Literatura, Política, Cordial, Impersonalidad.

Abstract: One of the great challenges in South American countries, in the era of the globalization markets, is to secure a position in the international arena as a modern nation and that desire drives Brazil as well. However, there are economic and cultural conditions about the foundation of this country that still have repercussions on present political and economic choices, and this historical-cultural dimension, guided by an individualistic view, an outcome from a patrimonial tradition, favour an personification of the interests of minorities to the detriment of the collective, generating practical consequences in the formation of the so-called “jeitinho brasileiro”. Guided by literary sources, this essay seeks to look back in to the past to understand this Brazilian characteristic that personalize public issues, in a confluence of historical, political and cultural elements that report the modus operandi of the Homo brasiliensis and are reflected in the present.

Keywords: Homo brasiliensis, Literature, Politics, Cordial, Impersonality.

Introdução

À primeira vista, a literatura parece distante da função de criar conceitos, porém, como ela está concatenada com a realidade, do seu interior, às vezes, pode se perceber o registro das condições econômicas, políticas e sociais que condicionam a própria obra por meio de uma ideia abstrata posta em vocábulos. Considerada como um acontecimento espontâneo da sua criatividade, os escritores não devem menosprezar que vivem em um entorno que lhe proporciona um vocabulário e uma série de circunstâncias que os coloca dentro de um sistema de linguagem e de crenças. E como criaturas adstritas a um contexto espaço-temporal, suas peças literárias refletem de algum modo as formulações teóricas e os debates de sua época e, por decorrência, geram interpretações da realidade e conceitos. E como fruto desta cercania, desse caldo de situações sentidas que se interpenetram entre si, em uma relação dialética, íntimo com o seu momento de criação, o escritor surge como uma ferramenta de tradução espiritual de seu tempo, denunciando as trevas, a beleza, o contraditório, a superação dos valores e, finalmente, a imagem do que o indivíduo aspira ser... Eis porque algumas obras não são apenas louvadas na Republica Literarum, mas também são apreciadas como um fenômeno de manifestação universal, tornando-se uma obra que molda o sentimento do indivíduo em relação à humanidade. Algumas obras reúnem um reflexo de como estavam os corações humanos a ponto de fornecer o esclarecimento e os laços entre pessoas e sociedades, explicitando ao leitor o mais profundo interesse das criaturas humanas.

... a literatura é um diamante de múltiplas faces e cada uma delas reflete um momento e uma gama da luz da realidade exterior e interior, física e mental, política e psicológica (...) toda literatura é sempre uma expressão direta ou indireta de algum aspecto da realidade...1

Na epígrafe de Aulas de literatura, vê-se Júlio Cortázar refletindo acerca da produção da obra e o papel do escritor nas últimas décadas. Não obstante à ressalva das “últimas décadas”, parece-me ser verossímil que certas obras ajudem a compreender o contexto em que elas foram produzidas, eis que escritas por alguém sob o domínio de certas instituições e que se relacionava com as pessoas à sua volta, tendo uma perspectiva social de mundo em sua época. A consciência de fatos histórico-sociais tem um motor psicológico que pode ser melhor compreendida a partir das motivações pessoais que são postas nas descrições literárias. Ao recorrer ao universo literário, procura-se um entendimento cultural que pode ser utilizado como elemento de ação política, pois busca o sentido do ser por meio da cultura. Tal conduta não prescinde da análise econômica e sociológica, mas procura entender o estilo de vida e as escolhas antropológicas do ser humano que vive no país por um viés metapolítico de sua cultura.

A partir da constatação de que a obra tem um pretexto com as questões humanas, a primeira observação que tenho de expor é que um elevado número de intelectuais, em suas épocas, foram levados a discutir o mesmo assunto por suas diversas perspectivas. E desde que as caravelas europeias cruzaram os oceanos, as raízes políticas, econômicas e sociais acompanharam os donos das embarcações, permitindo conjecturar que os problemas do velho continente foram desembargados nas terras invadidas. Desde então, o mundo se tornou pequeno, de modo que tudo gravita mais ou menos em torno das mesmas ações que promoveram as viagens. E, com a constituição dos poderes locais, as especificidades geográficas ganharam contornos pontuais, porém relacionados aos mesmos interesses políticos, econômicos e sociais. A história ensina assim, que boa parte dessas particularidades podem ser compreendidas com a ajuda da literatura, pois por diversas vezes, coube aos literatos diagnosticar os males das sociedades, bem como entender os laços complexos que formam as estruturas sociais, mostrando a perturbadora realidade por meio da ficção. A alusão à literatura e a sua vasta produção artística serve para mostrar como as perspectivas sociais eram e, sobretudo, para refletirmos como devem ser, ou como desejavam e desejamos que as coisas fossem.

O segundo aspecto que acrescento é a noção de que a literatura seja uma espécie de discurso narrativo que se desenvolve nas contradições existentes entre o ideal e o real, e, por meio de sua manifestação, que, em geral, toma um lugar de crítica, no qual os literatos produzem obras fictícias que permitem compreender a consciência histórica de um dado contexto. E some-se que a compreensão da cultura é um recurso indispensável a reflexão metapolítica.2 Baseado nessa proposição, utilizo quatro ícones da literatura brasileira, a saber, Mário de Andrade, Lima Barreto, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, para me auxiliarem na tese de que na história do Brasil certas ideias patrimonialistas exercem uma força educativa que causam uma tragédia à convivência social e, ao mesmo tempo, são imprescindíveis para se conhecer este profundo mal que estrutura o ordenamento pátrio que funda um Estado no qual a participação cívica tenha um efeito benéfico sobre a consciência de seus cidadãos.

O Homo brasiliensis e o estado brasileiro: a literatura mostra as perspectivas históricas

A literatura mostra que há certas estruturas institucionais que moldaram as atitudes dos brasileiros no decurso do tempo. No entanto, para formar um Estado Democrático de Direito é imprescindível que se pense o Brasil além da demanda econômica, principalmente pautando nas temáticas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.3 Elas são fundamentais, mas também é necessário avançar concomitantemente com outras questões. De imediato, acredito que, no âmbito das relações políticas, salvo melhor juízo, qualquer proposição deve basear-se na ideia do devido respeito à dignidade humana, motivo que ensejou duas revoluções para garantir que o homem, em si, tivesse direitos inalienáveis. Ora, deste modo, o fim de qualquer ação deve tomar como medida esse ethos, que, em seu decurso, promove uma tranquilidade moral e jurídica no campo político e econômico, à medida que esse princípio passa a fundamentar a coexistência social. Não se trata de nenhuma originalidade tal pressuposto, uma vez que as democracias ocidentais a escolheram como fundamento de suas constituições, mas é imprescindível agregar um elemento moral nas perspectivas que lidem com a condição humana. Além da imperiosidade de se tomar este princípio como valor universal, por necessidade de condições inerentes à participação de cada existência, é preciso adotar medidas concretas para sua real efetividade, uma vez que, em realidade, há uma enorme distância entre o imperativo da dignidade e a sua efetiva concretude.

Em segundo lugar, no caso do Brasil, abstraindo-se da ideia de que ninguém possa considerar-se acima da lei, o princípio sobredito —da dignidade humana— organiza a coexistência sócio-política por força da Carta Magna. Todavia, percebe-se como uma característica comum, de boa parte da população, uma recusa em aceitar a ordenação social a partir das leis; ocorre na verdade o contrário: há uma leve inclinação cultural de ser sempre afetivo em sua interpretação e aplicação, principalmente no que se refere às obrigações com o Estado. Desse modo, a política está ligada às pulsões do coração, bem como o seu modo de agir é impulsivo. Em virtude disso, minha primeira reação foi pensar: por que, depois de quinhentos anos de história, ainda sobrevive em minha nação um sentido de subserviência às matizes estrangeiras e, de idêntica maneira, um impedimento para colocar em prática o desiderato constitucional?

No processo de formação do Homo brasiliensis,4 é imprescindível identificar como certas ideias e padrões se formaram e, depois, foram artificialmente postas na mentalidade dos indivíduos como padrões “naturais”. A compreensão dessa perspectiva serve para, ao fim de minha escrita, apontar as direções e os desafios do Brasil, ao mesmo tempo em que mostra uma perspectiva imposta pelas elites dominantes. E a resposta à minha questão vem sendo posta desde o início do século xx sob a forma de literatura, razão pela qual recorro a ela para entender como o imaginário social institucionalizou, ao longo do tempo, ideias e noções que encontraram acesso ao coração das pessoas e, sob o sono da razão, associaram-se ao conceito do “homo brasiliensis”. Gostaria de começar com Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, um clássico do modernista Mário de Andrade em sua fase antropofágica. Diz o trecho inicial da obra:

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisa de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: —Ai! que preguiça!...5

A análise da gênese do “homo brasiliensis” não se desvela com essa autoimagem imposta pela ideologia dominante nacional em conluio com as matrizes econômicas internacionais. Entretanto, na formulação literária de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de 1928, há um caminho que diagnostica um cordão umbilical com as escolhas pretéritas e os óbices do presente que sempre impedem a nação de prosperar como uma unidade. Do personagem Macunaíma advém a ideia de que a felicidade é um direito natural para si, sem quaisquer obrigações de uns com outros, levando a uma despreocupação com as necessidades dos demais. A moral foi “flexibilizada” às condições relativas ao indivíduo que, para atender às suas pulsões, ainda que fossem proibidas por lei, pela moral ou pela religião, encontrava uma maneira de realizar sua concupiscência e estar em paz com as forças repressoras.

A figura de Macunaíma, em uma psicologia simplificada, exprime o imaginário que o universo da existência repousa no indivíduo, à proporção que toda ação deve ser revertida para si. Discordo do estereótipo de que nós, brasileiros, somos uma nação de “preguiçosos”, porém, na imagem de Macunaíma, sente-se a presença da ideia de que a “criança” Brasil não entendeu a questão da alteridade que se forma no devido respeito à dignidade do ser humano e na perspectiva de que direitos e deveres coexistem simultaneamente.

Observemos outra distinção do “homo brasiliensis” por meio da literatura:

Em virtude das posturas e leis municipais, rezava o papel, o Senhor Policarpo Quaresma, proprietário do sítio “Sossego”, era intimado, sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do referido sítio que confrontavam com as vias públicas.

O major ficou um tempo pensando. Julgava impossível uma tal intimação. Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a assinatura do Doutor Campos. Era certo... Mas que absurda intimação essa de capinar e limpar estradas na extensão de 1.200 metros, pois seu sítio dava de frente para um caminho e de um dos lados acompanhava outro na extensão de oitocentos metros - era possível!?6

Esta passagem pertence à obra o Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, publicada em 1911. Em apertada síntese, trata-se de um personagem que tem uma verdadeira devoção à pátria, bem como acredita que sua saída para prosperidade está no cultivo das terras férteis. Como possui o caráter de homem honrado e cumpridor das leis, não aceita participar de uma ação política espúria, motivo pelo qual o Doutor Campos, articulador daquela estratégia, estava agora usando os mecanismos do Estado para prejudicá-lo.

A literatura mais uma vez ajuda a compreender o “modus operandi” da classe dominante. O personagem tinha a ilusão de que a função da sociedade fosse organizar sensatamente a existência coletiva. Nessa obra, vê-se que as elites descobriram um modo de utilizarem os próprios instrumentos legítimos do Estado para se perpetuarem no poder, seja nas articulações para manobrar o processo eleitoral, seja na punição daqueles que não aceitavam fazer parte desse tipo de conluio. O protagonista dessa obra age durante toda a narrativa sob a ideia maquiaveliana de que “o homem não tem obrigação maior em sua vida do que com aquela (a sua pátria), sua existência dependendo primeiramente dela e, depois, tudo aquilo que de bom a natureza e a fortuna o concederam”.[7]

Não obstante à sua recusa em participar de uma trama ilegal contra o processo eleitoral, ganhou a notificação do poder municipal como represália à sua indiferença política (o uso do termo “indiferença” se ajusta porque não fez absolutamente nada para impedi-la, apenas não desejava se envolver). Afora as disputas políticas e, neste caso, a alienação pretendida de Policarpo Quaresma, a taxação imposta ao personagem pela figura do “Doutor Campos” serve como retrato fictício de traço constante na história do Brasil que também o impede de grandes transformações sociais e políticas. A ideia de que a lei serve para castigar os desafetos e beneficiar os correligionários está tão arraigada na consciência nacional brasileira que resulta em má condução política para quem enfrenta esse desafio sem perceber que o aparelhamento do Estado obedece a esse modelo. Aliás, por discordar de tal expediente, não é de causar surpresa que ao final da obra, nosso herói ufanista seja condenado à morte.

O Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956, traz mais uma ideia “criada” do “homo brasiliensis”:

O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum —Nenhum!— é o que digo. O senhor aprova?8

O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...9

Em tais relatos se percebe a historieta de um personagem que cometeu todos os crimes previstos em lei, mas que, ao final de sua existência, repousa tranquilo em sua fazenda, mostrando que realizou a jornada do herói (ao estilo dos personagens de Joseph Campbell – embora com uma narrativa cheia de caminhos labirínticos incontornáveis e sem sentido, caso não se conheça o sentido da palavra “sertão” e da presença do “jagunço” no Brasil). Do nascimento à serenidade do personagem, um interregno de guerras, conflitos existenciais e pactos demoníacos marcam a sua memória em um plano, que de modo amplo, descreve como sucedem as experiências de um povo abandonado pelo Estado e sujeito ao arbítrio dos coronéis.10 E graças a omissão do Estado, a instituição do coronelismo se firmou pela crueldade e rapinagem dos desassistidos pelo poder público.

Em consonância com o exposto acima, com o recurso à literatura histórico-jornalística, temos a publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em 1902, que nos descreve e faz refletir o período político da época como sendo aquele em que

O governo civil, iniciado em 1894, não tivera a base essencial de uma opinião pública organizada. Encontrara o país dividido em vitoriosos e vencidos [respectivamente: republicanos e monarquistas]... a significação superior dos princípios democráticos decaía – sofismada, invertida, anulada... Apelando, nas aperturas das crises que o assoberbaram, incondicionalmente, para todos os recursos, para todos os meios e para todos os adeptos, surgissem de onde surgissem, agia inteiramente fora da amplitude da opinião nacional, entre as paixões e interesses de um só partido que, salvante bem raras exceções, congregava todos os medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, evitam as imposições severas de um meio social mais culto.11

O novo Estado brasileiro, com a queda da Monarquia, se inicia sem a participação popular e com uma significativa parcela dos membros que compunham a máquina imperial do governo anterior. Sem natureza e objetivos elevados, nem mesmo um levantamento da realidade sociopolítica que procurasse levar o Estado às dimensões da existência social, este novo governo, desconhecendo totalmente as demandas e insurgências políticas, tratou de eliminar qualquer levante, o que serviu, em muito, para reforçar a predominância política, econômica e social dos proprietários rurais e a subserviência do homem do campo ao coronel, que se torna o “padrinho” da região.

As obras acima assinaladas constituem a sucessão das polêmicas desencadeadas pelas escolhas políticas do Brasil após seu pretenso amadurecimento político-social, notadamente destacando que tais obras emergiram em uma época na qual nossa cultura passou a buscar uma compreensão de uma identidade nacional a partir não mais de um paradigma eurocêntrico, mas brasileiro (o que não implica, obviamente, nacionalismo). Não se trata de buscar um perfil psicológico com bases deterministas, mas de entender o padrão moral que contribuiu para a consolidação do sistema centro-periferia da economia, no qual as elites tomaram os modelos dos centros para pensar a estrutura econômica, política e social.

A influência das ideias e o “descompromisso” público: pretérito e presente

Noutro vértice, pensando na emanação de ideias dos centros, nossas elites, em tempo algum da história, tomaram a noção de “governar” com vistas à formação de uma nação independente. Ao contrário disso, suas ações contribuíram efetivamente para uma estrutura típica de sujeição aos grandes centros externos. Aliás, a concepção de governo foi entendida na ação de criar facilidade ou óbices ao desenvolvimento, promovendo ou dificultando a industrialização de acordo com seus interesses, impedindo a distribuição de renda e não considerando as relações do modo de produção.

Assim, qualquer iniciativa econômica, política e social teria que passar pelo Estado, instrumento dominado pelas elites, que não tinha outra intenção senão usufruir vantagens para si. Deste modo, as elites faziam as leis que prejudicavam o avanço nacional em prol da dominação externa. Da criação à reformulação das leis, as elites procuraram tomar o excedente dos bens produzidos para atender aos interesses dos centros a que estavam vinculadas, depois para si. A análise histórica do Brasil mostra que desde a sua origem, as elites estiveram compactuadas com os interesses estrangeiros, comportamento que resultou, por um tempo significativo, em uma indústria sem a tecnologia adequada para competir internacionalmente e, sobretudo, na ausência de um mercado interno de consumo, o que estimularia a formação de um padrão de vida melhor a população.

É estranho ver como as elites evitavam transformações radicais, impedindo a fundação de uma nação próspera através de um modelo de desenvolvimento e de consolidação nacional. As mudanças, quando ocorriam, estavam articuladas na conjuntura de que outra subserviência estava sendo implantada, dentro da lógica de que esta traria mais vantagens aos interesses de quem governava, de fato, o país. Não se trata aqui de uma defesa pela rigidez das leis, mas sim a proposição de que elas devem estar subordinadas a uma noção de virtude que ao menos garantisse a segurança de seus concidadãos. E, dados os pactos “demoníacos” com os interesses externos, nossas elites puderam repousar tranquilamente em suas propriedades, até que fossem chamadas a impedir as transformações que realmente queiram desorganizar os pactos de interesses estrangeiros aos nacionais.

Aristóteles, na Política,12 já recomendava às cidades uma educação de excelência, na qual o cidadão, sendo capaz de mandar e obedecer em vista de um bem, exercia sua cidadania. Para o filósofo, como todos tinham um único e mesmo interesse, procuravam viver segundo as leis que assegurassem a felicidade, permitindo uma existência de cidadãos envolvidos com os demais em uma sociedade. Tal medida exige que a comunidade se desenvolva de maneira orgânica e com laços sociais, baseados na opinião de que, assistindo-se mutuamente, todos se beneficiam. Nesse sentido, as leis apenas regulam as relações e não são instrumentos factíveis à vontade do mais forte, fundamento que passa a ser um valor que deixa claro que é uma vantagem participar da cidade. Em Aristóteles, percebe-se o pressuposto da organização sócio-política e sua finalidade utilitária, ideia de identidade sócio-política nacional não compartilhada pelas elites brasileiras por se comportarem como porta-vozes dos interesses externos.

Retornando à fonte literária, percebe-se que as leis servem aos interesses dos poderosos e não para regular as coexistências em torno de uma ideia de justiça. Além disso, em razão da estreita relação entre poder, direito e política, a moral do dominador se torna dominante até que as massas percebam que a função do direito é apenas coercitiva, à proporção que o Estado não é imparcial no emprego de sua ordenação social. Embora voltado ao consumo e ao culto do individualismo dos tempos atuais e, especialmente, desejando um mercado interno que lhe ofereça maior diversidade de bens, o “homo brasiliensis” estranhamente se mantém ligado a uma tradição de que o Estado pode ser tratado como uma extensão de sua propriedade.

Desse modo, formou-se a mentalidade de que a corrupção é uma coisa abominável a uma pessoa de bem, principalmente se acostumada a fazer a coisa certa. No entanto, esse mesmo indivíduo não vê nenhuma contradição em gozar de benefícios do Estado por intermédio dos políticos amigos. Aliás, tendo essa possibilidade de acesso ao erário e/ou serviço público por vias sinuosas, ele considerará uma prova de falta de amizade por parte do político por não lhe conceder “tal benefício”. A flexibilidade moral de ver no Estado um caminho para sua felicidade permite construir a ideia de que nem todos são obrigados a viver sujeitos à submissão das leis, que sempre há um “jeito” de se isentar da obediência ao poder do Estado, quando não for possível reformulá-lo ao seu gosto.

As elites assim procederam ao longo da história, governando pela prática e pelo vício de suas vontades. Graças a esse subterfúgio das elites, esse “modus operandi” se vulgarizou em uma crença perigosa por parte enorme da população que insiste em se considerar acima da lei. É preciso sublinhar este equivocado traço moral que passa de uma geração a outra, estando presente no século xxi: o Estado não é impessoal. Ele se oferece como um meio familiar, uma força suprema a serviço das elites e dos seus operadores. A balança de sua justiça pende de tal forma que o indivíduo não pertencente às elites, para encontrar um caminho alternativo para sua felicidade, precise recorrer à via da marginalização, à alienação, ou aceitar o jogo de apadrinhamento. Não foi por acaso que os personagens aludidos nas obras mencionadas tomaram consciência de sua condição de desassistidos pelo Estado,13 à medida que a lei só pune os fracos, enquanto as elites são impuníveis.

A questão existencial se torna ainda mais problemática porque o indivíduo não percebe que suas escolhas são institucionalizadas e desvinculadas de um cordão umbilical. A verdadeira ironia montada pelas elites dominantes foi reprimir as pulsões dos subalternos, colocando para eles que tais questões são existenciais e depende de cada um superar os óbices que os impedem de crescer social e economicamente. Passivo à recepção dessa ideologia, mas, ao mesmo tempo, ambicioso por usufruir das benesses da produção dos bens e a estima social, o “homo brasiliensis” procurou na fisiologia da máquina estatal encontrar seu nicho de relações íntimas que permitiam, por um complexo sistema de doações, concessões, ações e omissões, tratar o Estado como um pedaço de sua propriedade pessoal e objeto mercantil seu e dos seus amigos. ‘Doutor Campos’, personagem do livro Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, encarna perfeitamente o perfil desse indivíduo que utiliza o Estado como uma loja de departamento para si, dando a base do patrimonialismo exposto por Faoro,14 que, no decurso do tempo, transformará a política em um balcão de negócios de famílias.

Nasce assim o princípio da “pessoalidade” que, na “república velha”, será exemplificada nas ações do Doutor Campos, que taxa, indevidamente, aqueles que não se sujeitam a participar dessa perspectiva. Além desse posicionamento questionável de lidar com o Estado como prolongamento de sua propriedade, disposição bem distinta da suposição aristotélica no que se refere à atitude moral, o “homo brasiliensis” agregou a este comportamento a noção geral de que as coisas devem ser assim, o que, em seguida, veio a naturalizar a atitude do ponto de vista moral. Novamente, o personagem de Doutor Campos ilustra muito bem esse modelo. Frustrado em conseguir o apoio de Policarpo Quaresma em seu diálogo, desiste do assunto e continua o entretenimento amical com este sobre outros assuntos, para, depois, em seu gabinete, adotar as medidas cabíveis para punir aqueles que não participam das artimanhas para permanecer no poder. Tal gesto torna público que o “homo brasiliensis” tem uma noção estética de que a política não é realizada de maneira racional, mas sim sob o jogo das paixões, pois a dominação se utiliza dos instrumentos do Estado para dar sustentação à lógica da própria dominação.

Na perspectiva de Bobbio e Bovero, sem se imiscuir nas sinuosidades inerentes a um exame mais preciso sobre o conteúdo de suas proposições, entende-se que as instituições das sociedades ocidentais foram se moldando na ideia de uma racionalidade para edificar a sua modernização, tendo no direito formal um princípio normativo. Afinal de contas, se a natureza humana busca viver segundo as regras da razão, ela deve “ingressar naquela única sociedade onde as leis (...) não são apenas formalmente válidas, mas também eficazes de fato”,15 sendo todos obrigados, pela razão, a se sujeitar às normas coletivas. No caso do Brasil, as elites, além de dominarem o sistema complexo do Estado, introduziram a particularidade da paixão no exercício burocrático da administração pública ao passo que permitiram distribuir as migalhas do erário por seu exército de fiéis: os afilhados do Estado. A este elemento constitutivo, surge então uma aristocracia operária que só toma consciência parcial da realidade sociopolítica, pois usufruindo às expensas da máquina estatal, precisa qualificar para si que suas ações são moralmente boas. O componente essencial dessa contradição, que precisa ser purificada pelos danos decorrentes da própria dinâmica existencial do indivíduo e do Estado, ocorre através da ideia de que a política seja um jogo de paixões, e, em virtude disso, está dissociada do viés moral. Este problema político exige uma saída moral que, no caso do brasileiro, o verdadeiro cidadão, na execução das suas atribuições, deve fazer aquilo que pede o seu coração: tratar com cordialidade os outros cidadãos. À frente do Estado, são os sentimentos que conduzem as ações, portanto, ser cordial é ser “homo brasiliensis”.

Em Raízes do Brasil,16 publicado em 1936, Sérgio Buarque de Holanda percebeu que o homem brasileiro age conforme determina seus impulsos. Trata-se de um ser que mobiliza sua conduta por aquilo que seu coração acredita. Segue daí a noção de cordial, que tanto pode se solidarizar com um ou direcionar seu ódio a outrem. Como a rede social é complexa, sob o domínio das elites, a distribuição dos cargos, prêmios e sinecuras traçam novas relações de aproximações. Na medida em que o gigantesco aparelho estatal é montado para impedir ascensões e transformações, os apaziguados das elites transvestem com outras roupagens princípios como legalidade, eficiência e, principalmente, impessoalidade para legitimar a aplicação das leis e concorrências ao gosto de seus interesses.

Nessa ambivalência sentimental, o íntimo se coloca como um óbice à modernização do Estado, pois, mantendo o coração à frente das decisões, não se moderniza o próprio Estado. Tal é, sem dúvida, a contribuição de Buarque. Todavia, indo um pouco além das aparências, a influência dessa cordialidade também será o sentimento que recusa a confecção de leis orgânicas que regulem a coexistência social a partir de um modelo elevado, como pensava Aristóteles. Nesse ponto, torna-se interessante suscitar Carl Schmitt, em O conceito do político,17 como uma alternativa de interpretação do “homo brasiliensis”, no momento em que aponta que a política não pode ser pensada exclusivamente em termos de afetos e desafetos. Na lógica brasileira, esse critério de discriminação permite que “os amigos” possam suprimir ou incrementar um ponto na formulação das leis.

Aliás, em um livro com vários autores, o historiador contemporâneo Leandro Karnal, ao comentar o homem cordial de Buarque, exprime: “o brasileiro acrescenta incisos, adiciona artigos às regras”18 a ponto de a legislação manter sempre a ambivalência sentimental; ajudando uns ao tempo em que prejudica outros. Dessa perspectiva, os interesses e ações são determinados pelo coração, o que prejudica a livre iniciativa e concorrência na economia e até a própria consciência de classe, pois, em virtude do temperamento, não se tipifica corretamente a que ideologia pertence os indivíduos. Além de ser prejudicial à própria consolidação da cidadania e ao estado democrático de direito que procura ser impessoal no trato da coisa pública, a cordialidade abre um espaço para a corrupção direta por meio de um instrumento conhecido no Brasil como o “jeitinho”:

Trata-se mesmo de um modo —jeito ou estilo— profundamente original e brasileiro de viver, e às vezes sobreviver, num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra, o respeito e, sobretudo, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres. Num mundo tão profundamente dividido, a malandragem e o “jeitinho” promovem uma esperança de tudo juntar numa totalidade harmoniosa e concreta.19

Tão provocativa é a compreensão desse “jeito brasileiro de ser”, que em 2008, a Presidência da República decidiu mapear a compreensão de valores éticos da sociedade brasileira, e, de acordo com a comissão a cargo da tarefa, constatou-se que “os resultados foram perturbadores. Eles demonstram a falta de valores éticos tanto entre servidores públicos como na própria sociedade brasileira”.20 Este esclarecimento revela a disposição enigmática do cidadão que se queixa pelo privilégio indevido de uns e, concomitantemente, quando a oportunidade lhe favorece, age como indivíduo contra os interesses dos cidadãos. O indivíduo se vê ainda como Macunaíma, agindo pelo cálculo relativo de sua moral sentimental. O esclarecimento do “jeitinho” consistiria em sua própria liquidação, mas sua manifestação está entrelaçada por toda parte da sociedade brasileira.

A experiência do passado e o desafio consciente

O eixo fulcral trazido à baila pela literatura incide que esses traços que ocorriam no pretérito persistem no presente. A homogeneidade do cordial brasileiro aceita essa discriminação como um caráter de organização das normas orgânicas que estruturam a sociedade. A ideologia criada pelas elites21 dominantes determina o destino do brasileiro que acredita, em casos isolados, que será preciso uma mudança de atitude radical para romper com essas crenças. Em verdade, compartilho dessa posição, no entanto, não creio que a ênfase deva ser dada em uma escolha existencial do sujeito, mas sim das instituições à proporção que estas determinam, desde a tenra idade, as concepções, as formas simbólicas e concretas das relações sociais. Não se trata de uma escolha individual, mas de uma mudança sistemática que transforme substancialmente a manifestação do “homo brasiliensis” para que as leis sejam sábias e cumpridas, não podendo ser alteradas para benefícios de uns e prejuízos de outros e, sobretudo, que haja uma clara demarcação entre o público e o privado.

Não sendo antropólogo, sociólogo e muito menos profeta, creio que seja fundamental discutir as proposições do Brasil para o século xxi, com destaque para as questões da produção e distribuição dos bens, bem como pela distribuição das terras improdutivas, mas se não for rompida essa tradição patrimonialista,22 sob a condução do “cordial brasileiro”, pouca transformação ocorrerá, e os desafios continuarão os mesmos.

No caso da realidade do trabalho e sua reprodução, sem aderir a uma leitura que reduza nossa complexa realidade de mundo a uma Weltanschauung dicotômica entre marxistas e neoliberais, tudo parece indicar que o modelo adotado pela política brasileira só tem aumentado as desigualdades sociais e, por decorrências dessas escolhas, os danos à dignidade humana são incomensuráveis. Do mesmo modo, julgo imprescindível se colocar na mesa da discussão política a questão da distribuição, ocupação e apoio técnico à terra produtiva. A extensa territorialidade do Brasil impõe esse e também o desafio de lidar com a agropecuária de forma sustentável, para o que se torna imprescindível que se haja respeito às leis, as boas leis.

Não se podem excluir estes dois tópicos acima, mas, no caso do Brasil, acredito que os enfrentamentos vindouros estão estreitamente vinculados aos traços apontados pelas descrições literárias e que se fazem presentes de um modo incisivo sobre as mentalidades que são reproduzidas por algumas instituições. Afinal de contas, quando os literatos expõem suas obras, que se entrecruzam em diversos aspectos, suas ações teóricas foram montadas em virtude do contexto que lhes oferecia uma motivação e a oportunidade de tomarem um lugar de crítica sobre o ambiente que os rodeava. As causas que impedem os avanços sociais no Brasil talvez ainda precisem ser melhor descortinadas, porém, acredito que um modelo ideal de política deva ter em mente algo elevado que instigue a vontade a trilhar por domínios não perseguidos, mas que mantenha a noção de que uns têm obrigações para com outros de forma dialética, fundada na promoção da efetiva dignidade humana. Recorro aos literatos, discutindo questões dos seus contextos, porque considero que este panorama político persiste nos dias atuais e, ao mesmo tempo, porque, usando da ficção que critica a realidade, talvez se tenha a chance de novas investigações, para se entender a própria concretude.

Penso que não há uma perspectiva privilegiada que possa, em uma visão unilateral, descrever e expressar os caminhos do Brasil no século xxi. Todavia, creio que seja possível refletir sobre os elementos constitutivos presentes desta nação que ainda representam um óbice à sua natural inclinação de se posicionar politicamente. Em uma discussão sobre a realidade sociopolítica do Brasil, não se pretende reconstituir a história dos fenômenos e ideias ocorridas nele, mas sim como uma de suas características se tornou um marco presente e que ainda impõe um se debruçar na contemporaneidade vindoura.

A evolução política do Brasil sempre foi ditada pelas elites, que se revezavam na condução de sua transformação econômica e social por meio do Estado. E este processo, que envolve os planos econômicos e sociais, não deve ser dissociado da ideia de que a exclusão de parte significativa da população era natural, um princípio que ainda persevera como uma estratégia moldada pelas forças que governam o destino da nação e que só podem ser vencidas pelo diálogo que expõe as suas controvérsias e, principalmente, no desafio consciente de que as pessoas são iguais perante as leis, visto que as leis não tocam a todos da mesma maneira. Este é, ao meu sentir, o persistente desafio do Brasil no século xxi.

Conclusão

Na literatura há uma série de contribuições que permitem observar como as situações históricas concretas foram sentidas e compreendidas pelos escritores de determinadas épocas. No teatro da política brasileira, a ausência do princípio da impessoalidade foi retratada de múltiplas formas, mostrando que, sob o ponto de vista prático, ao reclamar deste mal, os escritores constatavam que o problema moral era na verdade uma questão política, e ao final, o Estado baseia-se em uma concepção ideal maior do que os interesses de segmentos minoritários, e a este propósito, o bem comum pertence a todos.

Ao trazer literatos e apontar problemas pretéritos do Brasil, através da literatura, mostra-se que este tipo produção insiste e resiste através de suas peripécias em apontar que o passado persiste entre os brasileiros. Embora não se tenha tratado das variáveis deste problema nas outras nações sul-americanas, percebo que, com as suas especificidades territoriais tal questão existe em muitas nações do continente sul americano. É claro que, enquanto cada literatura nacional vislumbra os pontos específicos, é imperioso que se encontre um caminho dinâmico e estável para superar este mal comum para, em seguida, edificar um equilíbrio hispano-americano com vista a um desenvolvimento continental. Afinal de contas, como disse Alberto Buela,23 somos um fruto ibérico que ganhou um espírito sentimental inédito que deve dar os primeiros passos para fundar uma estrutura estatal que estimule a formação de uma vontade plural e, ao mesmo tempo, aglutinadora para a formação de uma perspectiva que molde a dimensão sul-americana de ser.

Não obstante a esta dimensão que exige um repensar na ideia de “fronteira” e, do caso do Brasil, da clássica autodeterminação dos povos, acredito que a reflexão teórica exigirá o enfrentamento consciente da questão do patrimonialismo. Nesse caso, o verdadeiro desafio do Brasil para o futuro (além de se pensar como parte constituinte daquela dimensão – sem impor a sua visão aos demais), será superar o problema social das estruturas institucionais que desenrolam a ideia de que as instituições podem servir para limitar a liberdade moral de outrem, mas, como o indivíduo em si mesmo, de sua moral unidimensional: o que é obrigatório para as outras pessoas pode ser contornado pelo “jeitinho brasileiro” de ser quando me refiro a mim ou a quem bem eu queira.

Desse modo, embora a formação do cidadão seja um problema sociológico, a questão da moralidade precisa ser enfrentada, além da dimensão existencial, no nível da interioridade do cidadão que exclui seus atos de valoração axiológica por outrem, mas também na dimensão sociológica com uma mudança significativa das instituições que o façam perceber que o desvio de material do escritório para fins particulares é tão reprovável quanto o desvio de verbas da saúde! Portanto, é imprescindível entender que:

1. A herança patrimonialista que centraliza tudo no Estado, readaptado historicamente e abençoado pelas instituições, formou uma elite dominante, parasita do Estado, que, em tempos mais modernos, se desdobra na corrupção, como um traço histórico de nossa política.

2. No imaginário coletivo, há uma ambivalência sentimental que procura a um só tempo: ajustar-se a uma conduta social de acordo com os desideratos da organização constitucional e, igualmente, quando as leis se tornam um óbice aos seus interesses, encontrar caminhos sinuosos e particulares (“o jeitinho”) que lhe garantem a fruição de suas pulsões e necessidades.

3. A subserviência aos modelos econômicos estrangeiros hegemônicos que garantem o “status quo” da elite sobredita e impede a adversidade de rebeliões nativas, bem como a constituição de uma classe de explorados.

4. Os mitos da cordialidade brasileira e da democracia racial consagram o sistema às afirmações anteriores.

5. A elevação do Brasil a uma economia do mundo empurra o país nos rumos da modernidade, em que o Estado deverá cumprir rigorosamente suas funções institucionais. Não obstante, o recente “Impeachment” da presidente da República foi a primeira derrota importante desse projeto. A disposição da sociedade brasileira em aceitar o “golpe” indica que a luta contra a corrupção no Brasil mal começou. Será longa e irreversível porque o binômio modernidade/atraso é excludente, mostrando que o eixo central do pensamento político não enfrenta o conflito no sentido de visão social de mundo, mas na ideia de que a coesão, a questão da ordem ainda é feita na noção de afeto e desafeto.

Finalmente, penso que, vencidos esses percalços, nada triviais (porém, eles devem ser feito nas instituições controladas pelas elites), o Brasil terá caminhos abertos para a grandeza que lhe espera. Não obstante, o passado nos persegue como um vaticínio. Assim, o grande desafio do Brasil, seja no plano interno e externo, é vencer o passado que, insiste em continuar moldando o presente, a fim de que se tenha a eficiência dos mecanismos que concretizem a tão almejada dignidade humana, princípio que informa todo e qualquer estado democrático de direito.

Referências

Julio Cortázar, Aulas de literatura (Rio de Janeiro, BR: Civilização Brasileira, 2015), 300-301.

Alberto Buela, Disyuntivas de nuestro tiempo: Metapolítica V (Buenos Aires, AR: Docencia, 2013). Para se dimensionar e ultrapassar a própria ação política.

Nesta perspectiva, vide os trabalhos de Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (São Paulo, BR: Companhia das Letras, 1987) e Desenvolvimento e subdesenvolvimento (Rio de Janeiro, BR: Contraponto, 2009).

Termo utilizado por Alfredo Bosi na introdução do livro de Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro: História de uma ideologia (São Paulo, BR: Ática, 1992). É estranho ver como um termo, aparentemente, de uso literário serve para designar uma característica específica da cultura brasileira: “o brasileiro deseja ser cordial”. Persuadido de que, graças à sua natureza, foi um povo escolhido, toda a sua ação tem como meta o prazer. O primado do afetivo se impõe em todas as questões. Desse modo, não há um cálculo entre prazeres e sanções, pois, sendo membros de uma grande família, sempre haverá uma maneira de escapar as punições pelas transgressões. Evidentemente que se trata de uma generalização, mas que, infelizmente, abarca uma conduta que envolve uma entidade fictícia real.

“En las puras honduras de la Selva-Espesa nace Macunaíma, el héroe de los nuestros. Es azul de tan negro e hijo del miedo de la noche. Hubo un momento en que el silencio era tan intenso escuchando el cuchicheo del río Uraricoera, que la india tapañumas dio a luz a una criatura fea. Y ese crío fue lo que llamarían después Macunaíma. Ya en la niñez hizo cosas que reque asustaban. En primera se pasó seis años sin decir ni pío. Si lo sonsacaban a hablar, exclamaba: —¡Ay, qué flojera! […]”. Mario de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (Rio de Janeiro, BR: Nova Fronteira, 2013), 13.

“En virtud de las reglamentaciones y leyes municipales, rezaba el papel, el señor Policarpo Quaresma, propietario de la quinta “El sosiego”, era intimado, bajo las penas de las mismas reglamentaciones y leyes, a cultivar e carpir los terrenos fronterizos de la quinta que confinaban con las vías públicas. El mayor se quedó un momento pensando. Juzgaba imposible tal intimación. ¿Sería verdad? Una broma... Leyó de nuevo el papel, vio la firma del doctor Campos. Era cierto. Pero qué absurda intimación ésa de carpir y limpiar caminos en una extensión de mil doscientos metros, pues su quinta daba por el frente a un camino y por uno de los lados acompañaba otro en extensión de ochocientos metros... ¿Era eso posible?”. Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma (Rio de Janeiro, BR: Nova Fronteira, 2011), 143-144.

Nicolau Maquiavel, Discurso sobre as formas de governo de Florença (Belo Horizonte, BR: UFMG, 2013), 27.

Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas (Rio de Janeiro, BR: Nova Fronteira, 2006), 10.

“El diablo campea dentro del hombre, en los repliegues del hombre; o es el hombre arruinado o el hombre hecho al revés. Suelto, por sí mismo, ciudadano, no hay diablo ninguno. ¡Ninguno! Es lo que digo. ¿Está de acuerdo? (...) Usted lo sabe: el sertón es donde manda quien es fuerte, con las astucias. ¡Dios mismo cuando venga, que venga armado! Y una bala es un pedacito de metal…”. Ibid., 19.

A relação entre os coronéis e o governo era fundamental para estrutura do sistema político. Este ponto pode ser observado na obra Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto: O munícipio e o regime representativo no Brasil (São Paulo, BR: Alfa-Omega, 1976).

“El gobierno civil, iniciado en 1894, no había tenido la base esencial de una opinión pública organizada. Había encontrado al país dividido en vencedores y vencidos (...) la significación superior de los principios democráticos decaía, anulada, invertida, vuelta un sofisma (...) En los momentos de crisis apelaba incondicionalmente a todos los recursos, a todos los medios y a todos los adeptos, saliesen de donde fuere, actuaba totalmente alejado de la amplitud de la opinión nacional, entre las pasiones e intereses de un partido que, salvando pocas excepciones, congregaba a todos los mediocres ambiciosos que, por instinto natural de defensa, evitan las imposiciones severas de un medio social más culto”. Euclides da Cunha, Os Sertões (São Paulo, BR: Abril, 2010), v. II, 13-14.

Aristóteles, Política (Brasília, BR: UnB, 1985).

Roberto Damatta, Carnavais, malandros e heróis (Rio de Janeiro, BR: Rocco, 1997) e, depois, O que faz brasil, Brasil? (Rio de Janeiro, BR: Rocco, 1986), levanta a ideia de que o brasileiro por um intermédio de relações pessoais encontra um modo de se salvar perante um conjunto de leis.

Raymundo Faoro, Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro (São Paulo, BR: Globo, 2007).

Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero, Sociedade, e estado na filosofia política moderna (São Paulo, BR: Brasiliense, 1986), 91.

Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (São Paulo, BR: Companhia das Letras, 1995).

Carl Schmitt, O conceito do político (Lisboa, PT: Edições 70, 2015).

Leandro Karnal et al., Verdades e mentiras (Campinas, BR: Papitus 7, 2016) ,13.

Roberto DaMatta, O que faz brasil, Brasil? (Rio de Janeiro, BR: Rocco, 1986), 107.

Presidência da República, Comissão de ética pública: Pesquisa sobre valores éticos (Brasília, BR: Comissão de Ética Pública, 2009), 13.

A discussão sobre as relações de interesses e atuações das elites na condução do Estado brasileiro são polissêmicas, mas, salvo melhor juízo, seguimos a perspectiva de Jessé Souza, A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite (São Paulo, BR: LeYa, 2015).

Raymundo Faoro, Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (São Paulo, BR: Globo, 2007) discute a origem da visão patrimonialista. Quanto à compreensão do termo, há uma gama de estudiosos que procura entender como a relação de domínio e poder dos latifundiários se fundaram e prosperaram paralela ao governo estatal. De modo mais resumido, nestas linhas só estamos tratando dos efeitos dessa relação que se caracteriza pela forma em que as pessoas se apropriam e dispõe dos bens públicos como uma extensão do seu patrimônio particular.

Buela, Ensayos de disenso, 152.

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